Luzia começou a ganhar uma corcunda no fim da meninice e início da vida adulta. Virou alvo do povo da tapera, que via o detalhe físico como fruto do além. Foi meio que salva pelo fato de lavar roupa para a igreja, embora os padres não fossem exatamente os salvadores daquela gente sofrida, pobre e obrigada a pagar o foro para cultivar a terra. É essa uma das questões centrais de Salvar o fogo, novo romance de Itamar Vieira Júnior, vencedor do Jabuti com Torto arado, fenômeno da literatura nacional.
No novo livro, uma família ocupa um pedacinho ínfimo de terra pertencente à igreja à beira do rio Paraguaçu, nos arredores da Chapada Diamantina. A luta pelo direito à terra, à dignidade, à própria origem cultural desses personagens egressos de uma comunidade afro-indígena é o ponto de partida para um romance cuja narrativa não esconde a ligação com a saga de Bibiana e Belonísia em Torto arado. "Salvar o fogo nasceu enquanto escrevia Torto arado: percebi que queria avançar, desdobrar a história narrando outras variações do acesso de homens e mulheres à terra", conta Itamar. "A chapada é um lugar em que estive por muito tempo, essa paisagem onde se desenrola a trama é um lugar muito familiar, porque é onde meus avós viveram por muitos anos e essas memórias faziam parte da família."
Luzia é um dos membros de uma família que há gerações vive do pequeno cultivo da terra da qual a igreja se apropriou. Entre irmãs e irmãos, acaba por ser a única a não abandonar o local em busca de um futuro menos embrutecido e é para ela que todos voltam à medida que os pais morrem e as gerações avançam. Moisés, o mais novo, é quem foi mais longe ao aprender a ler no colégio de padres, mas fugiu antes que o conhecimento pudesse levá-lo a outro lugar na esfera social. Uma cena de pedofilia entre um padre e um aluno no mosteiro espantou o menino.
Há várias camadas de tempo em Salvar o fogo, capítulos que se alternam com passado e presente, um vai e volta capaz de catapultar o leitor para um universo que beira o místico, com a corcunda de Luzia, metáfora para o fardo da vida, uma busca velada de remédios da floresta, que se o povo da tapera descobre, acusa bruxaria, umas visões do passado brutal da escravidão e a perspectiva de futuro frustrada pela desigualdade recorrente. "É como se a história dessas pessoas, dessa família, de alguma maneira fosse uma alegoria sobre a história do Brasil, um país violentado, brutalizado", repara Itamar. "Quando passo a contar a história da Luzia, no fundo quero contar a história do Moisés e a história do Brasil. É uma comunidade afro-indígena, diversos momentos fazem referência às invasões, à miscigenação com os brancos, e é uma história que chega ao nosso tempo como se se repetisse. É uma história de violência, mas que também carrega uma formação muito forte, como a das grandes civilizações." Em entrevista ao Correio, Itamar fala o Brasil que inspirou o livro.
Entrevista: Itamar Vieira Júnior
A questão da terra está novamente presente nesse romance e é uma questão cara para você, que pontua a tua escrita. Por quê?
Acho que toda literatura espelha a cultura, a diversidade cultural e ética de um país. O que me move a escrever vem muito da minha experiência durante muito tempo encontrando pessoas no campo brasileiro. É um lugar com muita vida, onde a vida pulsa de maneira gritante e pungente, é importante para o país e a gente não se dá conta disso. Tudo que consumimos passa pelo campo. E é um lugar de conflito onde está em jogo a questão ambiental com, de um lado, grandes capitalistas e a massa trabalhadora que não consegue acesso à terra. No campo, ainda há uma reminiscência muito marcante da história da formação do Brasil, o passado colonial e escravista que reverbera ainda no nosso cotidiano. Falar sobre o campo é falar, de maneira mais abrangente, sobre o que influencia o Brasil ser o que é hoje.
O fogo tem uma simbologia forte no livro, Luzia é acusada de incendiar coisas com o olhar. Por que incorporar a força desse elemento no romance?
O fogo atravessa nossa vida de muitas maneiras. Quando os invasores chegaram para colonizar o país, muitas comunidades que existiam na costa brasileira ficaram perplexas porque não conheciam a arma de fogo. E esse fogo seria instrumento para dominar, mas também para parar um processo de libertação. É um elemento ambíguo, dele pode vir a destruição, mas também a salvação. E a metáfora mais perfeita do que nos impele a criar, a viver, a transformar o mundo. O fogo é associado ao desejo na nossa cultura. É uma palavra que tem muitos significados. É simbólico daquilo que ergue mas também destrói e que habita todo ser humano.
A saga da terra se repete e arrasta gerações, mas o que mudou do século 20 para o 21?
Acho que a mudança foi importante, mas não veio do estado brasileiro, que não tem levado a sério essa política da reforma agrária. Vivemos um período crítico da nossa história. As mudanças que vejo têm sido provocadas pela mobilização política do MST e outros derivados, como os quilombolas, os indígenas. As coisas têm mudado a passos muito lentos e muito pela força desse movimento de provocar governos, instituições, o judiciário, o parlamento, o Congresso. Todos os avanços civilizatórios que vivemos nos últimos 30 anos foram fruto de um ambiente democrático no qual as pessoas reivindicaram fazer valer o que está na Constituição.
Mesmo com o governo Bolsonaro e todos os retrocessos na atenção para a questão da desigualdade?
A sociedade civil organizada impediu tragédias maiores de acontecerem. Movimento sociais, dos negros, dos indígenas, dos sem terra, dos sem teto, dos quilombolas continuaram mobilizados e impediram retorcesso smaiores. Eles estavam ali para impedir danos maiores, porque danos sabíamos que haveria. Estiveram firmes e fortes. Não se calaram, criticaram profundamente. Esses movimentos têm um papel importante, inclusive na reversão do quadro que impediu que ele se reelegesse.
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