ENTREVISTA

Oitentáculos: Nei Lopes celebra 80 anos e lança livro de poemas

Um dos principais pensadores vivos da alma brasileira, Nei Lopes fala ao Correio sobre seu livro de poemas, Oitentáculos, e destaca a emoção de uma boa bateria de samba: "Haja coração!"

José Carlos Vieira
postado em 16/05/2023 08:00 / atualizado em 16/05/2023 10:09
 (crédito: Jefferson Mello/Divulgação)
(crédito: Jefferson Mello/Divulgação)

Ouvir, ler, conversar com Nei Lopes é uma benção. O poeta, compositor, cantor e estudioso da ancestralidade africana celebra 80 anos com um refinado livro de poemas. Oitentáculos (ed. Record). O bate-papo com o Correio foi rápido, mas capaz de desanuviar qualquer estresse ou mau olhado provocados pelos tempos tristes vividos recentemente no país. Nei Lopes, com a elegância de um mestre-salas, falou sobre seus versos, poema é sentimento puro", e sobre a saudade que tem "da numerosa família proletária da qual fui o filho mais novo e hoje sou o único remanescente". Oitentáculos passeia pelas terras da cultura afro-indígena e pela "cosmologia dos orixás", além de perfumar palavras com leves lembranças da mocidade no bairro de Irajá, no Rio de Janeiro. Ele, um dos maiores pensadores brasileiros vivos, reafirma nos poemas a tríade "Poesia, Democracia e Direito". Prolífico, antecipa ao Correio o nome do próximo romance que lançará no fim do mês, "A última volta do Rio". Imperdível!

Oitentáculos é uma certidão (poética) de vida. Como foi escolher e reunir esses versos, alguns escritos entre as décadas de 1970 e 1980?

Na verdade, os poemas antigos, reescritos, são poucos. Mesmo porque, em 1996 e 2014, eu publiquei duas coletâneas de inéditos, Incursões sobre a pele e Poétnica. Agora, o que dá o tom do livro é exatamente o clima de barbárie que vivemos nos últimos quatro anos, e que, felizmente, já vemos se dissipando.

O poema e a letra de um samba têm suas similaridades, mas o que os distingue?

A letra de canção, qualquer que seja o gênero, é cálculo, matemática, pois tem que se encaixar na melodia, na métrica e na acentuação das sílabas. O poema, eu vejo como abstração, sentimento puro, as rimas, quando acontecem, surgindo ao acaso. Pelo menos, comigo é assim.

Em que momento a poesia surgiu na sua vida?

Entre os 12 e 13 anos , escrevi um soneto de amor. Quando mostrei para o irmão mais velho, com receio de levar uma bronca, ele simplesmente pegou o violão e encaixou uma melodia, dolente, de samba-canção.

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  • Oitentáculos reúne um conjunto de poemas que reinventam Nei Lopes, Divulgação
  • O cantor e compositor Nei Lopes. Jefferson Mello/Divulgação

O poema Crença é muito atual, que fala sobre o deus dos algoritmos, que dita e escraviza vidas. Como é o Deus da sua aldeia?

Na minha "aldeia", o Ser Supremo é tratado por vários nomes diferentes, como Olófim, Olodumare, Olórum... Mas o que Ele é mesmo é a "Força Ativa que estabelece e conserva a ordem natural de tudo quanto existe". E esta é uma das definições de "Natureza", grafadas no Dicionário Barsa do Meio Ambiente, edição de 2009.

Nesses 80 anos bem vividos, do que você sente saudade? Tem algum arrependimento?

Tenho muita saudade da numerosa família proletária da qual fui o filho mais novo e hoje sou o único remanescente. Mas hoje sou o patriarca de uma pequena linhagem, e isto é bom. Arrependimento, tenho alguns; mas minha espiritualidade me ajuda a suportar.

O Brasil viveu nessas últimas décadas uma urbanização predatória, que mastigou costumes de bairros populares, como Irajá, no Rio de Janeiro, onde você viveu. Como é observar essas mudanças? Como manter tradições?

Existe agora uma palavra da moda que é "gentrificação" (do inglês, para variar, rs). Ela explica muito disso que acontece. E "tradição" nem sempre merece ser mantida. Aí, eu prefiro ser memorialista do que ser saudosista. Os romances e contos que escrevo, todos são feitos de lembranças. E este é o jeito que eu encontrei para reviver as minhas "tradições".

Ainda sobre tradições, o tema ancestralidade, felizmente, vem ganhando espaço entre os jovens. Há uma necessidade (e não modismo) de se assumir como uma pessoa preta, apesar de vivermos numa sociedade racista até a raiz. Seus versos (tanto na poesia quanto no samba) trazem a grandeza africana. É esse o caminho para os jovens?

Esse é o meu caminho, como disse acima. Quem quiser entrar nele, será bem chegado!

Passamos por anos difíceis, em que o ódio era pauta diária, como a poesia pode ajudar na luta por um país melhor?

Um país melhor não se faz só de poesia. Mas o que o Chico Buarque escreve é lição.

Moral, Ética, Direito... Essa tríade o rege e o anima a lutar contra o apagamento da cultura negra pelas elites e o mercado. Quais exemplos de ações e pessoas o senhor destacaria nesse front diário contra
o racismo?

Sou autor de um livro intitulado Afro-Brasil reluzente: 100 personalidades notáveis do século XX, lançado em 2019. Se fosse agora, eu incluiria o jurista Sílvio Almeida, nosso ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania.

O samba da Tia Ciata ainda está vivo?

O samba da Tia Ciata é o mesmo que se canta, toca e dança até hoje na Bahia, sobretudo no Recôncavo. Nunca fui a um desfile de uma escola de samba, nunca subi o morro cantando... Queria que o senhor me descrevesse essas emoções... É indescritível! E, mais ainda, é estar no meio de uma boa bateria de escola, sentindo a polirritmia, os instrumentos da percussão "conversando" uns com os outros. Haja coração!

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