Documentário

Documentário rediscute a importância de Jair Rodrigues para a música brasileira

Documentário em cartaz nos cinemas rediscute a imagem de Jair Rodrigues e ressalta a relevância do cantor para a música popular brasileira

Ricardo Daehn
postado em 01/05/2023 06:00
 (crédito:  Elo Studios/Divulgação)
(crédito: Elo Studios/Divulgação)

Morto há praticamente nove anos, em decorrência de infarto, o cantor Jair Rodrigues puxa uma extensa leva de elogios, no decorrer do documentário Jair Rodrigues: Deixa que digam. Associado à simplicidade e ao "inexplicável", o cantor que "nunca desafinou" e que, ao lado da colega Elis Regina, puxa o predicado de uma "força natural" da música, é esquadrinhado desde a origem sertaneja até o insuflar de antigos e novos sambas. Pouco depois da consagração, em 1963, com o prêmio Roquette Pinto de sambista revelação paulista, pela projeção do disco Dois na Bossa, cravou (com Elis) o primeiro registro nacional de mais de 1 milhão de unidades vendidas. Diretor do filme, recém-estreado no circuito, Rubens Rewald enfatiza: "Jair se mistura com a evolução da indústria cultural. Tem muita coisa dele na tevê, tínhamos horas e horas de material, coisas incríveis — coube selecionar o filé do filé. Muita coisa boa ficou de fora, deu até dor no coração, mas o filme não podia ter cinco horas de duração (risos)".

Wilson Simoninha comparece em cena para saudar os feitos do músico formado pela prática, sem muito estudo formal. O professor Salloma Salomão desponta para enfatizar que, numa sociedade civilizada, Jair seria tema de curso na ECA, teria os discos sistematizados, em estudos, com o peculiar modelo de corporalidade dele. "Hey, hey, hey — Jair é nosso rei", dispara parte das 150 mil pessoas presentes a uma das edições do Rock in Rio, cristalizando a saudação do ídolo que popularizou versos como "pega no ganzê, pega no ganzá" e "Em casa que mulher manda, até o galo canta fino", trecho da hilária Leão de coleira.

Entre os momentos ternos do filme, Jair aparece cantando O filho do seu menino, ao lado da ainda pequeninha filha Luciana Mello. A viúva Claudine Rodrigues (que foi modelo do estilista Clodovil) conta da piscadela que a conquistou, numa saída para a Catedral do Samba, no bairro do Bixiga. Dercy Gonçalves também está no documentário, em imagem de arquivo, para endossar o "gesto de bobagem" (como destacava a mãe de Jair, Dona Conceição), repetido por pencas de brasileiros, indissociável a um dos grandes estrondos musicais do cantor.

Até a chegada de momentos mais tensos, como o do relato da morte da primeira filha de Jair, o documentário se afirma em depoimentos como os de Hermeto Paschoal, um dos primeiros a presenciar o público "se ligando", ao Jair "misturar tudo" em termos de música. Rappin Hood identifica o mestre como autor da era pré-rap e hip-hop. Nascido em 1939, em Igarapava (SP), ao contar sua trajetória, Jair enfatiza o nascimento, praticamente num colchão de palha feito em canavial em que, por pouco, não teve o cordão umbilical cortado à base de facão. Confirmando a perspectiva de uma antiga professora de canto, que definiu: "Ele pode enfrentar qualquer público", Jair meteu as caras com públicos de boate, cabaré, teatros e rádio. Inquieto e sem falsa modéstia, ele detecta, em cena, em meados dos anos de 1960, ter entrado "para história com Elis Regina", ao apresentar o programa O fino da bossa, no Teatro Paramount. Na mesma linha, o pesquisador Zuza Homem de Mello conta o episódio "com clima de final de Copa", na disputa entre as clássicas A banda e Disparada, em festival da TV Record (1966), e ainda há uma cena em que a multidão do Teatro Record Centro delira, com a expressiva Canto chorado. Com imenso carisma, Jair Rodrigues ainda aparece no filme conclamando, em meio a largo sorriso: "Deus abençoe que dê tudo certo na nossas vidas".

Entrevista com Rubens Rewald, cineasta

Rubens Rewald, diretor de cinema
Rubens Rewald, diretor de cinema (foto: Rita F. Rewald/Divulgacao)


Você defende a versão "apolítico" reservada para o Jair, ou acredita que preponderava uma militância "nas entrelinhas"?

Acredito que ele circulava pelos dois lados. Jair era uma pessoa muito simples, não tinha um discurso político. Portanto, ele não era capaz de elaborar um discurso ou uma ação contra a ditadura. Por outro lado, era um cara superinteligente e sensitivo, entendia quando havia injustiças ou coisas erradas, portanto sem fazer alarde fazia muitas ações inclusivas, dando espaço para artistas negros e, principalmente, se colocando na grande mídia. Ele foi o primeiro apresentador negro da tevê brasileira, algo impensável na época. E colocou sua família, uma família negra, como referência no imaginário brasileiro. Isso não é pouco em termos de visibilidade do negro. O filme explora bastante esse aspecto do Jair.

Jair foi dos primeiros a cantar a "sofrência" no país (risos)?

Jair cresceu no campo, na vida rural, então desde cedo se familiarizou com a música caipira, com a modinha. Nesses gêneros, era muito comum a evocação da vida rural, suas belezas e dificuldades. Se você pega as músicas do Tonico e Tinoco, está cheio de amor não correspondido, de vida dura, de pobreza, de injustiça. Por isso, ele cantou tão bem Disparada, que se relaciona com esse mundo difícil do campo e de suas mazelas, e por isso também que ele migrou tão naturalmente para a música sertaneja, principalmente pós A majestade o sabiá. A sofrência já estava desde sempre em seu DNA.

Você percebe algum conceito estético nas capas de LPs do Jair e que apontem para uma satisfação dele?

A história do Jair se confunde com a história da indústria cultural no Brasil. A evolução da carreira do Jair vem junto com a evolução da tevê e da indústria fonográfica. Então os discos vendiam muito e havia toda uma equipe profissional que cuidava do lançamento desses discos. Uma das principais figuras dessa indústria era o capista, responsável pelas capas dos discos. E como o Jair era um dos artistas que mais vendia discos da gravadora Philips, uma gigante do ramo, seus discos eram muito bem cuidados. As capas focavam invariavelmente na sua figura, sempre alegre e risonha. Gosto muito de duas: Jair de todos os sambas (1969) e Talento e bossa de Jair Rodrigues (1970), ambas com imagens estilizadas do cantor, explorando o contraste entre o preto e branco. São imagens lindas e o filme explora essa vertente do Jair, fazendo um clipe com várias dessas capas.

No peso das raízes afro da música dele e ainda da fundação dele no sertanejo: o que foi mais potente no repertório?

O repertório dele passa por ambos os estilos, e muito mais. Ele adorava samba canção, por exemplo. Jair era um cantor, um intérprete, acima de tudo. A música estava no seu sangue. Era interessante conversar com o Jair, no meio da conversa ele emendava alguma música que tinha vindo à mente dele. Ele não parava de cantar. Um músico de sua banda falou num depoimento: "o Jair nunca precisava aquecer a voz, pois ele cantava o dia inteiro, sua voz estava sempre aquecida". Então é difícil falar deste estilo ou do outro. Jair encarnava todos os estilos. Do samba ao rap, da música sertaneja a MPB, do samba canção ao bolero — tudo era Jair.

Com Dois na Bossa, mesmo no filme, há quem conteste o branqueamento do samba. Jair era crítico em relação a isso?

Não acho que ele fosse crítico, ele simplesmente cantava coisas da Bossa Nova, com suas lindas canções. Mas o samba estava em suas veias, e, aos poucos, ele foi trazendo de volta pra mídia, o samba raiz, o samba negro do morro. Jair foi muito importante nessa valorização do samba como um produto cultural de alta qualidade. E mais, o Jair lançou muito sambista, como Martinho da Vila, Alcione, e muito compositor negro de escolas de samba. O Jair não tinha preconceito, ele ouvia uma música e se gostasse, ele gravava, indiferente de quem tinha feito. A Roberta Miranda, por exemplo, foi ele que lançou, com A majestade e o sabiá.

Antes dele, de fato, não existia isso de se misturar ao público, como apontam no filme?

O cantor era mais reverente, ficava no espaço do palco, cantando suas músicas. Se pegarmos a Bossa Nova então, era um banquinho e um violão, super cool. O Jair aprendeu a cantar em boates, na vida noturna, nos inferninhos, onde o palco era minúsculo, e o cantor ou crooner ficava colado ao público. Juntando essa escola com sua alegria e irreverência, foi um pulo para ele gostar de se misturar com o público, virar um show de cabeça pra baixo, transformar suas apresentações em uma espécie de performance teatral, misturando música e brincadeiras, e o público adorava. O homem era um verdadeiro show man!

Por que você não explorou mais a questão da participação dele no Super Nada?

No roteiro original do filme havia uma parte para se falar no Super Nada, filme que dirigi com ele como ator. Foi aí que nos conhecemos. Entrevistei o ator principal do filme, uma diretora que ajudou na preparação e até me entrevistei (risos), falando da experiência de dirigir o Jair. Mas no fim, a relação dele com a música era tão forte, que o filme ficou sem lugar. Tudo bem, tem uma cena do filme que é do Super Nada, já fiquei feliz.

Há um momento turvo, na carreira dele, não?

Sim, foi um grande baque na carreira dele, sua relação com a Philips tinha mais de vinte anos e de repente ele estava no olho da rua. Mas logo se reinventou, principalmente com sua adesão ao sertanejo. Mesmo assim, por muitos anos, Jair saiu da FM, virou um cantor de AM, saiu do circuito da mídia, não se falava mais dele nos jornais. Foi só no final dos anos 90, que o seu filho Jair Oliveira começou a produzir seus discos e vieram trabalhos de grande qualidade, inclusive contemplados com o Grammy. Mesmo assim, em nenhum momento o Jair parou de dar show, mesmo quando tava esquecido pela grande mídia. Sua adesão popular sempre foi enorme, em toda a sua carreira.

Que momento foi esse, com o Pelé, na gravação do Cidade grande?

Duas estrelas negras no país, Pelé com o futebol, Jair com a música. Jair era santista e adorava futebol, queria ter sido jogador. Pelé adorava música, queria ter sido cantor. Pronto: claro, os dois viraram grandes amigos, e o clipe do Fantástico dos anos de 1970 celebra essa amizade deles. É um grande momento do filme.

Quais foram os dados mais inesperados de Jair, a partir da tua pesquisa?

Um cineasta quando vai fazer um filme, seja ele ficção ou documentário, sempre procura um conflito. É nossa obsessão! E eu queria buscar um lado oculto do Jair, uma zona de sombra em seu comportamento. Buscava mostrar que sua alegria era uma máscara social, que escondia uma pessoa mais triste e melancólica. Em todas as entrevistas tentei extrair do entrevistado situações com Jair bravo, nervoso, triste, deprimido — e fracassei, de modo retumbante. Todos eram unânimes: Jair era a pura alegria. Desisti de meu plano inicial e aceitei esse fato. E busquei no filme retratar essa alegria sem fim, esse otimismo, essa utopia existencial.

No que resultou isso?

Acabou virando um pouco um filme sobre um Brasil de uma outra época, quando a alegria era o nosso traço. Jair simbolizava esse país. Hoje parece que essa alegria, esse otimismo, sumiram, andam escondidos, ninguém sabe para onde foram, e o pior, ninguém sabe se voltarão. Essa é a nossa questão atual. Muitas pessoas que assistem ao filme ficam muito emocionadas com a figura do Jair, sua musicalidade, mas também se emocionam com a visão de um país que já não existe mais. Entre o tempo do Jair Rodrigues e hoje, muita coisa aconteceu, muitos problemas, um outro Jair surgiu, o país degringolou de muitas formas, tá difícil reconstruí-lo. Mas, enfim, vamos ser otimistas como o Jair Rodrigues e acreditar que ainda encontraremos a alegria perdida.

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  • Luciana Mello, ao lado do pai Jair Rodrigues
    Luciana Mello, ao lado do pai Jair Rodrigues Foto: Fotos: Elo Studios/Divulgação
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    Elementos de família pesam na trama Foto: Elo Studios/Divulgação
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    Rubens Rewald, diretor de cinema Foto: Rita F. Rewald/Divulgacao
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