Jornal Correio Braziliense

Entrevista

Ao Correio, José Eduardo Belmonte detalha as complexidades do novo filme

O diretor fala sobre o filme ‘O pastor e o guerrilheiro’, em cartaz nos cinemas, no qual se empenha em ver o outro sem preconceitos

Recém-lançado na cidade, o longa O pastor e o guerrilheiro trouxe inúmeras camadas de complexidades técnicas para o diretor José Eduardo Belmonte. Situado em diferentes épocas, o longa trata de candentes temas políticos e de aspectos ideológicos. Cenas como a da invasão da Universidade de Brasília, por exemplo trouxeram empenho extra para figurante e dublês, em plena sincronia, além de apuro de efeitos especiais, sem contar o forte apelo dramático — tudo com "dimensões épicas", como resume o cineasta de 52 anos. O dinamismo das filmagens testou a perícia do diretor com planejamento. Vieram à tona aprendizados com produções como Carcereiros. Nisso, refinou as equipes do longa e se cercou de bons assistentes de direção, a exemplo dos filmes de ação do currículo entre os quais Alemão e a sequência desse sucesso.

Com envolvimento de produtores como Nilson Rodrigues, Caetano Curi e Luiz Fernando Emediato, o longa, pelo conteúdo, se alinhou a expectativas do cineasta convidado para capitanear a narrativa. Belmonte, aliás, acredita que o mercado ainda opere com "paradigmas muito antigos em relação a cinema de autor e cinema comercial: um filme pode ter um dono até, mas ele tem muitos criadores".

No somatório de ideias, na colaboração, o diretor vê personagens habitarem a realidade. E O pastor e o guerrilheiro opera justo com galeria de tipos que guardam a crença na utopia, "com ares quixotescos". Nisso, o artista credita a vivência nas ruas de Brasília — e que amadurecem seu processo, pela constância do que seja dialético. "Existe uma questão brasileira, não sei se é imaturidade (por ser um país jovem): algo como uma preguiça em relação ao outro. Eu tratava disso já nos meus curtas — como o 5 filmes estrangeiros. Há uma incapacidade de ver o outro na sua complexidade", comenta.

Sem minimizar a importância de prêmios — ainda que acredite que eles nem sempre meçam talento —, Belmonte festeja os vários prêmios acumulados pelo novo trabalho, na Mostra Brasília de 2022. A mescla de religião e política parece ter agradado, na dose. "Não tivemos intenção de confronto, ao tratar de um universo tão complexo como o evangélico, com tantas nuances, com tantas segmentações. Muitas vezes, os religiosos trazem trabalhos importantes desenvolvidos dentro da comunidade", completa.

Entrevista com José Eduardo Belmonte, cineasta

O teu filme O pastor e o guerrilheiro contribui para o arrefecimento de antagonistas e embates da atualidade?

A grande questão desse filme é abordar o fato de que existem as divergências, os contrários — e é bom que existam —, mas é tão bom e tão importante que exista o diálogo e a capacidade de ver o outro na sua complexidade, entender suas questões e tentar estabelecer pontes. Essa é a mensagem do filme pra mim e o que me motivou a aceitar esse projeto.

Que sentimento nutre pela Mostra Brasília, que te trouxe tantos prêmios com o filme?

Eu tenho realmente uma relação muito afetiva com a Mostra Brasília. Fui de uma geração que brigou muito para ela existir, como realizador e também fazendo política, tentando convencer — e aí temos que dar também o mérito ao Dirceu Lustosa, presidente da ABCV na época, que conseguiu articular muito pra essa configuração que hoje existe da Mostra Legislativa. Sobre o que me deixa satisfeito, isso varia muito de projeto a projeto; mas cada um tem seu aprendizado e eu tento entender qual é o de cada. Isso me marca mais que outras coisas. No caso do O pastor e o guerrilheiro, para mim, foi incrível apresentar o filme para alunos do ensino médio da rede pública e das universidades: foram quase 10 mil alunos; aonde o filme conseguiu chegar, os diálogos que ele estabeleceu, o impacto que promoveu, o que ouvimos nessas conversas, isso foi um evento muito transformador. A proposta do filme aconteceu nesses eventos: chegar em outros lugares, mostrar cultura em outros lugares e estabelecer pontes em outros lugares. Esse é o grande marco desse filme pra mim.

Faz diferença ter uma capital novamente habitada por Bolsonaro, no período de lançamento do filme? Aliás, no filme, um personagem fala em "devolver o Brasil para os brasileiros"... Acredita que isso esteja em curso?

Essa pergunta me lembra a frase do Millôr Fernandes: "O Brasil tem um enorme passado pela frente". Várias questões ainda para se resolver, para que a gente consiga ter uma nação mais igualitária, mais democrática, mais justa. Mas fico feliz que a gente esteja voltando a estabelecer diálogos, um processo de normalidade de democracia, de escuta e de entendimento das diferenças. Essa também é uma questão muito brasileira. Tudo é um recomeço constante, estamos sempre recomeçando, sempre tentando nos livrar desse peso do nosso passado que temos que curar. Estamos caminhando.

O quanto se manteve obrigado ao argumento do produtor do filme e ao roteiro de outros profissionais? Você acredita num toque autoral para a obra?

Tive um processo de muito aprendizado a partir do momento que fiz muitos filmes na última década; fiz muitos filmes que vieram de produtores, foi um processo de experimentação também, de expandir o conhecimento, as experiências, mas o que eu acho mais interessante é quando a gente consegue trabalhar com produtores que são muito permeáveis e que te chamam por conta da sua visão, quando o principal fator do convite é a sua visão do filme. A gente trabalhou nesse filme com um produtor muito aberto ao diálogo. E eu também quero trabalhar sempre assim. Ele, o produtor, também aceitou muito a colaboração dos atores. Isso foi muito importante. Meus últimos dois filmes foram assim, com produtores muito permeáveis; e a gente também agindo dessa forma junto ao elenco, que contribui muito. Quando acontece essa junção dos criadores, e o roteirista também está junto, é muito potente; acho que isso tem que ser feito em qualquer tipo de filme, seja autoral, comercial ou experimental.

Qual foi a cena mais difícil na execução e o que te deixou realizado?

As mais difíceis, na verdade, são as que exigem sutilezas e complexidades emocionais dentro da cena. O diálogo do Johnny Massaro com Cesar Mello, um diálogo grande, que eles conversam sobre suas crenças e suas fés, foi uma cena que exigiu bastante — durou uma tarde inteira para acontecer. Fiz com duas câmeras inclusive, abri para o improviso; eu não queria perder muitas coisas que aconteceriam. E exige muita concentração para acontecer, de entendimento das sutilezas e de percepções nos atos de fazer e refazer. Esse tipo de cena é tão complexa de montar e de realizar quanto cenas de desafio técnico.

Você, aparentemente, não avilta os crentes evangélicos retratados no filme. Como vê o cinema com discurso frontalmente crítico e contrário à frente religiosa operante no país?

É preciso ter o discernimento, olhar as coisas com atenção, com afetividade, acolhimento, sem perder o senso crítico. Mas é preciso saber juntar essas coisas; a questão do discernimento é muito importante na dramaturgia e para um artista. Uma das coisas que me motivou a fazer era mostrar uma complexidade desse universo que acho que sempre ficava muito no lugar da caricatura, reducionista, o que na minha opinião tira a humanidade dessas pessoas. Entendo, e também sou crítico a algumas questões, mas acho que desvios existem em todos os segmentos. Então, é preciso olhar com distinção e senso crítico.

A UnB tem um bom peso para a trama. O que ela representa para você?

A UnB foi fundamental na minha formação, eu fiquei seis anos lá. Teve uma época em que eu literalmente vivia na UnB; tive grandes experiências, aprendizados, professores, colegas. Eu acho um modelo de universidade incrível para o país, como ideia e conceito. Para mim, a UnB é um marco fundamental na minha vida. E, sim, na UnB tive toda base de entendimento intelectual, de visão de mundo e também de entendimento técnico mesmo. Claro que a gente vai amadurecendo. Mas as bases estão na UnB. Não só nos ensinamentos, mas nos corredores, na convivência com os colegas, nesses primeiros anos de formação da juventude para vida adulta.

Você buscou um equilíbrio, sem "dedos na cara" e lições de moral, no andamento da fita — isso é claro e acurado?

Sempre falava que era um filme em que queria estabelecer pontes e diálogos. Tinha que buscar o equilíbrio. A questão de você ter um posicionamento político não quer dizer que você não tem que buscar esse equilíbrio. Acho que a gente viu o quanto isso é importante nesse processo todo que a gente passou e quanto é importante para a construção da gente como sociedade e como indivíduo também.

Do que fez questão de manter ao abordar tema inspirado em um guerrilheiro da vida real? Qual foi a história dele e em que mais se afasta do filme?

Tem elemento do Glênio Sá (autor de Araguaia — Relato de um guerrilheiro), do José Genoíno e ainda de outros relatos. Quando o Johnny (Massaro) entrou no filme, ele se sentiu muito compelido a se aproximar mais do Glênio, inclusive ele botou um pouco de sotaque, pediu para trazer coisas que estavam no diário do Glênio, inseridas em voice over. Então, existe essa proximidade, sim, e, principalmente, tentando reproduzir um pouco essa vivência da relação com a floresta, que está no livro e que também é um pouco uma vivência espiritual e de entendimento das crenças, do porque das crenças dele naquele momento. Algumas liberdades foram tomadas, a gente somou personagens num só; o próprio pastor são dois personagens que foram juntados num só. A história que é totalmente ficcional é a de 1999, da Juliana; claro, inspirada em relatos de pessoas que tiveram familiares ligados à ditadura, mas essa parte é a parte ficcional do filme.

Teus filmes têm trazido sempre uma notável carga de busca religiosa ou espiritual. Que papel isso ocupa na tua vida, e crê que, como observador, as pessoas se modificaram, passada a pandemia?

Acho que a pandemia deixou muitas feridas sociais e psicológicas que a gente está tentando resolver, recomeçar também. Acho que a espiritualidade, sim ajuda, é um elemento muito importante da vida, que as pessoas às vezes negligenciam e eu acho que para o entendimento da pessoa é isso: o homem é corpo, alma, espírito; a gente tem que entender ele não só por um lado, acho que tem que ter uma visão mais completa das pessoas; é um tema muito importante e que sempre me interessou porque me interessa na minha vida também.