Jornal Correio Braziliense

Música

Vanessa da Mata canta piseiro e trap em novo disco, 'Vem doce'

Na passagem dos 20 anos de carreira, Vanessa da Mata lança Vem doce, álbum que mostra reinvenção e explora os diferentes aspectos do canto Ela morou na cidade, anonimamente, durante a pandemia

Conhecida nos quatro cantos do Brasil, Vanessa da Mata conquistou o país pela voz delicada e destreza com as palavras — combinação infalível que resultou em alguns dos maiores sucessos dos anos 2000. Hoje, 20 anos após a estreia no mundo musical, Vanessa prova que ainda tem muito a mostrar. Ao longo de 13 faixas, Vem doce, novo trabalho da cantora, é um retrato da aventura  por ritmos considerados fora de sua zona de conforto, como o piseiro e o trap, evidenciando a capacidade de renovação da mato-grossense.

Além do talento de cantora, Vanessa, também autora do livro A filha das flores, traz à tona, no álbum, o lado escritora. "Esse disco veio a partir de crônicas. Meu trabalho tem muito a ver com crônicas nacionais, contando sobre o cotidiano do povo brasileiro", explica a cantora em entrevista ao Correio. "Eu fui criada a partir da necessidade de falar sobre tudo, não só da amiga fofoqueira que todo mundo tem, mas também da vizinha enjoada e da face e avesso do Brasil desse momento", destaca a artista, em referência às faixas do álbum.

Em Face e avesso, por exemplo, a mato-grossense canta a indignação da realidade do Brasil em versos como: "Aos gays que o medo molda / Às mulheres inutilizadas / Às crianças mofando nos abrigos". "A nossa sociedade é uma sociedade que tem que sair do lugar, não dá para o Brasil ficar nessa posição de um dos países mais violentos do mundo. É algo difícil de lidar, que a gente tem que sair de qualquer maneira", protesta.

Outro grande destaque do disco são as parcerias, que vão desde Ana Carolina, amiga de longa data de Vanessa, a João Gomes, que teve o primeiro contato com a cantora via Instagram. "Ele me chamou para cantar no DVD dele e eu chamei ele para cantar no meu disco", relata a artista. Em Vem doce, os dois dividem os vocais em Comentário a respeito de John, uma releitura do sucesso de Belchior. "Para minha surpresa, João é muito fã do Belchior e conhece tudo de música brasileira. Ele é de uma cultura impressionante e muito rica. É difícil, hoje em dia, achar um cara de 20 anos que tenha metade da cultura musical que ele tem", elogia.

O encontro entre Vanessa da Mata e João Gomes foi responsável por outra parceria surpreendente no disco, a com o rapper L7nnon. Apesar da colaboração inédita entre os artistas, essa não foi a primeira experiência da mato-grossense no hip-hop. "Já fiz outras parcerias no rap, com cantores como Emicida, Marcelo Falcão, entre tantas outras pessoas", exemplifica. "A música conversa muito com tudo e eu sou de um lugar do Mato Grosso, do rio Araguaia, onde eu ouvia, em uma única rádio, Amado Batista, Tom Jobim, Chico Buarque e Tonico e Tinoco", destaca.

Amor a Brasília

A relação de Vanessa da Mata com o Centro-Oeste brasileiro vai além do nascimento e infância no Mato Grosso. Durante a pandemia, a cantora morou em Brasília, período de tempo que rendeu outra parceria em Vem doce, com Dom Lucas. "Por um momento da minha vida, eu aluguei uma casa em Brasília e passei muito tempo na cidade", revela. Foi na cidade, por meio de uma amiga, que a cantora conheceu o trabalho do artista brasiliense. "Minha amiga me apresentou algumas coisas do Dom e, um dia, ele chegou com um violão. Naquela angústia da pandemia, eu falei: "Vamos fazer música". Desse encontro, surgiram algumas canções e a principal delas foi Me liga. Ela tem muito a ver com o disco, é em um ritmo mais sambarock, assim como algumas das faixas do álbum", avalia.

Sucesso

Ademais da colaboração, Vanessa lembra dos tempos vividos na capital com muito carinho. "Essa época de Brasília foi muito gostosa, porque eu tinha muito espaço. Como eu sou do interior, isso é imprescindível para mim. Eu jogava futebol o tempo inteiro, tinham muitas árvores no quintal, que são as mesmas do resto do Centro-Oeste, da minha infância. Foi ótimo", relembra. A mais recente passagem da cantora pela cidade foi durante um momento muito significativo para a capital — Vanessa se apresentou na virada do ano, na Esplanada dos Ministérios. "A apresentação da virada foi bem simbólica. Eu me lembro que choveu, soltaram fogos que não acabavam mais, todos que vieram para a posse do Lula estavam no show, festejando. Foi em um novo momento do Brasil, que eu acho que tem que se estender, porque é um investimento público para o povo brasileiro que precisa existir, de agora em diante, em todos os governos. Não é uma coisa de um governo só", opina.

Vem doce é a cereja no bolo das comemorações de 20 anos de carreira de Vanessa da Mata. "Eu não paro nunca, talvez seja esse um diferencial meu. Eu preciso compor, eu preciso escrever. Até hoje, eu saio todos os dias e sento para escrever em um café", conta. "Desde o meu primeiro disco, eu tenho como ofício ser compositora. Eu gosto disso. Eu acho essa parte a mais interessante de tudo, principalmente porque nós temos esse poder da fala há pouquíssimo tempo. Se para falar era difícil, para compor, escrever e distribuir isso em uma amplificação da fala é muito mais difícil. Muitas mulheres não conseguem interpretar o próprio pensamento, elas precisam de outros homens fazendo música para elas, isso é muito sintomático", lamenta.

Após duas décadas em atividade, Vanessa ainda enxerga semelhanças entre a artista de hoje e a artista de 2003. "Existe um vínculo de ser a mesma alma, o mesmo corpo e a mesma vontade. Isso não muda. Eu sou a mesma compositora que falava, desde o primeiro disco, como é importante uma mulher falar das suas coisas e provocar e criticar uma sociedade que precisa tanto de evolução", finaliza.