Caísa Tibúrcio sempre gostou de Chiquinha Gonzaga. Ficava espantada toda vez que se afeiçoava a uma música e descobria ser a compositora carioca a autora da peça. "Toda vez que eu gostava de uma música e falava 'que música é essa?', era dela. Ficava feliz de saber que era uma mulher do século 19 que compôs. Mas quando fiquei sabendo que Abre Alas era dela, uma música tão emblemática do carnaval, quis saber mais sobre ela", conta. A partir daí, a atriz entrou em um caminho sem volta materializado no espetáculo Abre alas: concerto à doidivana, que tem apresentação única hoje no Teatro Caixa Cultural.
Com direção de Karla Conká, a peça é um misto de teatro, musical e show de circo criado para celebrar a música de Chiquinha Gonzaga. No palco, uma palhaça dirige uma bicicleta modelo Penny Farthing, com uma roda grande na frente e duas pequenas atrás, enquanto faz um show com as obras da compositora. A palhaça constrói o repertório e o formato do espetáculo junto com o público. "A dramaturgia é simples, não tem muitas elaborações. E cada música virou um núcleo, virou uma cena. Canto, toco acordeon e instrumentos que tem na bicicleta", explica Caísa. Entre as músicas estão algumas mais conhecidas, como Abre alas, Corta jaca, Lua Branca e Atraente, e algumas menos conhecidas, caso de Meditação, Argentina e Canção do Maestro.
A bicicleta, chamada de Triluna e pensada e construída pela própria Caísa especialmente para o espetáculo, é também um personagem e um instrumento. Ou vários. A roda maior comporta uma marimba, com os raios em canos de alumínio afinados segundo as notas musicais necessárias para executar algumas das canções. Nas rodas de trás estão dois pratos e no guidão, outra marimba e um xilofone. Um tamborim, um agogô e buzinas, elemento muito comum na palhaçaria, completam a pequena orquestra de Caísa Tibúrcio.
Era essencial para a atriz fazer a associação entre Chiquinha Gonzaga e o universo da palhaçaria. Esse diálogo, que é tema também da tese de doutorado de Caísa, é praticamente inexplorado na literatura sobre a produção da compositora. "Quando comecei a entender mais do período histórico e do contexto, percebi que pouco se falava da relação dela com o circo, com a comédia e com a comicidade da época, que foi importante para o país. O Brasil deixava de ser império e começava a ser República. Havia uma preocupação dos artistas da cara que a gente ia ter. Os artistas queriam fazer uma arte que tivesse a cara do Brasil", conta Caísa. "E comecei a perceber a relação dela com as palhaçarias. Quando comecei a pesquisar os palhaços, vi que tinha relação."
Quando chegou ao Brasil, o circo vinha repleto de figuras conhecidas como os excêntricos musicais, um tipo de palhaço mais europeu, que fazia música com objetos, panelas e serrotes. "Essas figuras se misturavam com a comédia e com as referências do Brasil e, daí, surgiram os palhaços cantores. Eles gravaram muitas músicas da Chiquinha Gonzaga. E ninguém faz essa ligação", explica Caísa, que contou com a direção da carioca Karla Concá, fundadora do Maria das Graças, grupo pioneiro de mulheres palhaças criado em 1991. "O desafio é que a gente não faz a Chiquinha Gonzaga, a gente conta a história dela e é a palhaça da Caísa quem conta. O espetáculo é feito dentro dessa lógica que é a palhaçaria, esse mundo que chamo de torto, que é do riso: a partir do riso as coisas vão se construindo. É um desafio grande pegar um mulher da grandeza de Chiquinha Gonzaga, pioneira, feminista, e botar uma palhaça falando sobre ela", diz Karla.
Duas perguntas para Caísa Tibúrcio...
Por que uma palhaça para contar a história de Chiquinha Gonzaga?
Os palhaços eram figuras importantes da sociedade. O circo era um grande evento naquela época, não tinha TV nem nada disso, e o Rio de Janeiro receberia muito circo do mundo inteiro, inclusive chinês, era uma rota. O palhaço brasileiro começou a ser muito requisitado, inclusive na rádio. A Casa Edson, primeira gravadora da indústria fonográfica no Brasil, contratava palhaços cantores fixos que tocavam violão, faziam piada, cantavam e falavam texto no meio, chamavam as pessoas para duelar em duo de vozes. E eles gravavam as músicas da Chiquinha Gonzaga. No IMS, quando a gente olha os arquivos, a maioria das músicas dela eram gravadas por palhaços cantores. Além disso, os maestros que tocavam no circo, que regiam as orquestras, eram músicos parceiros dela. Ela era conhecida como uma mulher de teatro e muitos dos atores que rodavam no teatro estavam no circo. Era o início do teatro de revista e os atores circulavam entre circo e teatro. Quando vi toda essa conexão pensei que seria muito interessante fazer um espetáculo de palhaçaria falando da Chiquinha. Ainda mais sendo mulher. Porque na época a mulher não era palhaça, o palhaço era figura masculina tradicionalmente no circo.
A dramaturgia é cheia de música, mas também tem muitas referências que vão além de Chiquinha Gonzaga, que remetem a uma época e a um pioneirismo….
É uma dramaturgia diferente. Queria um espetáculo que tivesse um flerte com o teatro e que trabalhasse com uma comicidade mais feminina. Porque vou falar de uma mulher. Queria unir várias coisas, inclusive porque a dramaturgia da palhaçaria feminina, que é contemporânea, não vem de uma tradição, é uma coisa que está sendo construída, não opera com a mesma lógica da palhaçaria tradicional. Paralelo ao meu interesse de fazer um espetáculo sobre Chiquinha Gonzaga, estava brincando de construir um instrumento, bebendo nessa fonte dos excêntricos musicais, e resolvi fazer uma bicicleta. E quando fui estudar a história da bicicleta, vi que tinha sido uma peça simbólica e emblemática do movimento feminista, no final do século 19. Estava presente no movimento sufragista, uma mulher que andava de bicicleta era uma mulher feminista, não dependia de ninguém, andava livremente pela cidade. E teve uma mudança na roupa, mulheres começaram a usar calça. A bicicleta foi para o circo, substituindo um pouco o cavalo, e começaram os números de acrobacia. E virou uma coisa da mulher, muitas mulheres circenses usavam a bicicleta. Isso traz reflexões sobre liberdade, mobilidade, independência, claro de outra maneira hoje, mas faz parte da história da bicicleta.