Entre músicos e bandas da geração do rock brasiliense, surgidos na década de 1980, o vocalista, guitarrista Philippe Seabra, o baixista André X e a Plebe Rude foram os únicos que se mantiveram na cidade, de onde desenvolveram uma longeva carreira em mais de 40 anos. O grupo lançou oito discos, a partir do seminal O concreto já rachou. O mais recente é o da segunda parte do projeto Evolução, que acaba de ser lançado. A gravação, no estúdio Daybreak, iniciada em 2020, foi interrompida por conta da pandemia.
O CD traz 12 faixas que passeiam por eventos tão díspares da humanidade quanto os estilos musicais apresentados no repertório. "Depois de 200 mil anos de homo sapiens na terra, sobrevivemos a todas as adversidades, desde impérios desesperados, genocidas e pragas letais — desde a Idade Média até chegar os tempos de agora", sublinha André X. "Foi estudando o passado que enxergamos o futuro, mas a eterna vigilância continua sempre necessária", acredita Philippe Seabra. Os dois têm como companheiros de grupo Clemente Nascimento (voz e guitarra) e Marcelo Capucci (bateria).
Nesse projeto, cuja primeira parte chegou às plataformas digitais há dois anos, os plebeus tiveram como convidados o ex-futebolista e atualmente comentarista esportivo Walter Casagrande Jr., o ator e diretor de teatro Jarbas Homem de Mello, além de Fábio Yoshirare, Dani Buarque e Ana Clariano Floriano. Ao se referir à segunda parte do Evolução, André comemora: "A sensação de dever de casa entregue atrasado, porém com acerto total das questões e elogio da professora! É assim que me sinto com o lançamento do segundo e último volume de Evolução". 'Agora, a história está completa. Ao longo de 28 músicas, cantamos e tocamos a história do homem, seu desenvolvimento, suas decisões certas e erradas e as consequências. Trabalho intenso, que agora fica disponível" para o mundo", acrescenta.
O projeto Evolução, iniciado há três anos, com o lançamento do primeiro álbum. À época, o país vivia um período obscuro. Agora, com a segunda parte, você observa mudanças institucionalmente relevantes?
Tivemos a infelicidade de lançar o Volume 1 em dezembro de 2019 com a previsão de lançar o volume 2 logo em seguida, em abril de 2020. Não precisa nem falar que atrasou um pouquinho. Somente três anos depois estamos lançando o disco no mesmo local que seria em 2020, no Circo Voador, a segunda casa da Plebe. Em 2020, as passagens já estavam emitidas quando a humanidade parou por causa da covid! Mas, na semana que vem, tudo volta ao normal, começando no Rio e, no dia seguinte, em Belo Horizonte. Depois, São Paulo capital, Jundiaí e Campinas… Desde a inserção de Evolução, muita coisa mudou, que pode ser — e olha aí a atemporalidade das letras da Plebe — resumida na canção que encerra o espetáculo que se chama O pêndulo da história, e assim como O descobrimento da América, do Volume 1, passa dos 10 minutos de duração.
O pêndulo vai e vem no balançar natural de sua cadência, às vezes tendendo a hesitação, ficando suspenso em uma das extremidades, como tem ficado nos últimos 15 anos no Brasil. Mas, seguindo as leis da física e do universo, o pêndulo eventualmente volta. Infelizmente, foi para o outro extremo, e põe extremo nisso. Mas isso é insignificante no arco do tempo do universo. Esse nível de ignorância, intolerância e extremismo simplesmente não se sustenta. "A terra é plana", "não há racismo no Brasil", "rock leva ao aborto e ao satanismo", "o sujeito mais leve lá pesava sete arrobas. Nem pra procriador ele serve mais"… Bom que essa presença horrível em nossas vidas foi embora. Repito, isso não se sustenta. A história nos ensina isso. Evolução, por isso, é um musical com uma mensagem de esperança, mesmo tendo que mostrar as coisas feias que o homem fez. Vai passar, mas depende do aprendizado pelos erros cometidos.
Neste segundo disco, igualmente temático, quais foram suas fontes de inspiração?
A evolução desde o despertar da consciência há uns 200 mil a 150 mil anos atrás. Curioso esse tal de homo sapiens, capaz de sonhos tão lindos e de pesadelos tão horríveis. Já o lado feio da humanidade volta e meia se manifesta, com muito mais frequência do que gostaríamos. Aqui, no nosso querido e confuso Brasil, essa recente ameaça da volta da censura (e pior, a censura moral), do criacionismo nas escolas, do AI-5, a ameaça a separação do estado e religião… Parece que tudo que a Plebe cantou, tudo que protestou esses anos todos passou a ser relevante de novo, fazendo letras — algumas delas mais datadas como Censura e Proteção, assustadoramente atuais. É a comprovação que o Brasil mudou pouco desde que começamos. E isso é uma tragédia.
Acredita que conseguiu chegar a algo positivo ao expor suas ideias?
Evolução não é de hoje. Eu e o André, baixista e co-fundador da banda — e quem nos abastecia das últimas novidades da Inglaterra influenciado a todos — temos a música Evolução há 30 anos sem saber exatamente o que fazer com ela. Tinha muito teclado, a letra era uma história e tinha um tom irreverente (apesar de contundente) bastante contrário da pegada mais séria da Plebe. Como não entrou no repertório da Plebe, mostrei para o Evandro Mesquita caso tivessem interesse em utilizá-la, mas ele não sentiu que era a cara da Blitz, uma maneira gentil de dizer que não gostou.
"Caramba", pensávamos, "se nem pra Blitz serve...", então ficou arquivada esse tempo todo, quase 30 anos! Mas sim, o musical tem sido muito bem recebido e continua ainda a contundência da Plebe. Citando a música Descobrimento da América do Volume 1, que trata da colonização da Américas, (essa com 10 minutos e trinta!) passamos pela América do Sul. Não tem jeito. Atitude e raiva está no DNA da Plebe e por sermos da década que somos e da cidade em que vivíamos, não tinha como ser de outro jeito. Qual é a hora de parar? Só quando outra geração se enterrar.
Que contribuição trouxeram para este trabalho Walter Casagrande Jr, Jarbas Homem de Mello, Fábio Yoshida e Ana Carolina Floriano e Dani Buarque?
Eu conhecia um ator de Brasília, o Fabio Yoshihara, que atuava em musicais na Broadway Brasil em São Paulo, peças como Rent e Fantasma da Ópera e liguei para tirar duvidas de como funcionava o meio teatral. Em meia hora me pôs em contato com o Jarbas Homem de Mello e quase que instantaneamente topou dirigir. E logo de cara ele ajudou a dar mais leveza ao musical, pedindo mais "luz" em algumas músicas e que colocasse em destaque as coisas positivas e conquistas que o homem conseguiu na sua trajetória. Daí que surgiu a música Vitória (do Volume 2) e a música mais alegre do espetáculo (e da história d Plebe), a divertida Um belo dia em Florença, que fala sobre o Renascimento, um momento mágico da humanidade.
O Jarbas tinha razão e o lado positivo da saga do homem no planeta tinha que ser celebrado. Até então nós estávamos sendo inconscientemente influenciados — ainda mais sendo de Brasília — pela absurda guinada à direita que o Brasil deu recentemente, mostrando o lado feio, agressivo e intolerante do brasileiro, que na verdade está no seu DNA desde Getúlio Vargas. Parece que tudo que a Plebe alertou contra em toda sua trajetória acabou voltando e, com força, num retrocesso e tanto do bom senso e discernimento. Que bom que ele deu essa luz para a gente. Já o Casagrande, fã da banda, narrou na faixa do Volume 1; e a Ana Carolina Floriano, na época, com 11 anos, cantou com sua voz angelical nas faixas Nova Fronteira (Volume 1) e A Quieta Desolação (Volume 2). Já a Dani Buarque, da banda The Monic cedeu sua voz poderosa na faixa Vitória. O ponto de vista feminino fortaleceu muito o musical.
A linha evolutiva do homem é objeto da sua curiosidade neste trabalho. Nesse sentido você vê progresso na humanidade?
Albert Einstein dizia não saber como a terceira guerra mundial seria lutada, mas que a quarta seria com pedras e paus. Mas longe de ser um apanhado de músicas aleatoriamente escolhidas, o musical Evolução tem um fio condutor: a saga do homem a partir de sua conscientização e a música tema homônima resumem a história toda, do começo ao fim, que nem os overtures de peças, desde A Noviça Rebelde a Tommy, só que fizemos com letra em vez de música, quando diversos temas são tocadas no início, para que quando ocorrem no meio do decorrer da narrativa, tem um quê de familiar. O musical é uma reflexão sobre a humanidade e sua incapacidade de aprender pelos erros e não tem como fugir do comentário sobre o atual momento da humanidade, e do Brasil. Mas como resumimos mais de 200 mil anos de história em 28 músicas, há uma ponta de esperança.
O show de lançamento do Evolução -- Volume 2 será sexta-feira próxima no Circo Voador. Qual é ligação da Plebe Rude com este tradicional espaço artístico, no centro do Rio de Janeiro?
O Circo Voador é a segunda casa da Plebe, onde lançamos inúmeros discos e foi onde tocamos pela primeira vez com a Legião, ainda sem disco, abrindo para os Paralamas do Sucesso, lançando o compacto de Óculos no verão de 1984.
Na sequência dará início à nova turnê. Quando a banda se apresenta em Brasília?
Nada marcado ainda para Brasília, mas chegaremos sim.
Quarenta anos depois do surgimento da Plebe Rude, que avaliação faz da trajetória da banda?
São tantas histórias e tantos anos de banda que nem saberia por onde começar, mas a Plebe pagou um preço alto por se manter coerente nesse mar do showbiz brasileiro. A formação original, infelizmente, não conseguiu ir em frente, mas com a entrada do Clemente há quase 22 anos (2004) é que fez a Plebe viável como conjunto de rapazes que se dão novamente. Tentamos voltar a formação original em 1999, mas todos os problemas de drogas e intransigência voltaram, e somente cinco anos depois é que vimos a Plebe ser uma banda de novo e voltamos a ter prazer em tocar.
No caso de Evolução, como estava passando de 2/3 da escrita da minha autobiografia O cara da Plebe, a ser lançada nos próximos meses, no fim de 2018 encontrei a letra original de Evolução no meu acervo e retornei a musica para falar desse fase da banda (1989), quando tínhamos virado um trio com a saída do Jander. Aí, me toquei de como era legal e tinha resistido ao teste do tempo.
Como vê o rock brasileiro atualmente?
Tem muita coisa rolando e o rock está mais vivo do que nunca, mas, infelizmente, perdeu muito espaço na mídia. Estou sentindo que os grandes shows estão voltando, e nada, nada levanta mais uma juventude consciente do que o rock. Digo consciente porque o resto pode ficar no open bar com a mentalidade "closed minds" ouvindo a última tendência que os algoritmos empurram goela abaixo.