Madame Akli sufoca numa Argélia tomada pela instabilidade após a independência, conquistada no início da década de 1960. Ela é francesa, casada com um argelino, mãe de um menino, mas não se encaixa, não se adapta, nem ao casamento, nem à reviravolta política que agita o país. Heitor é o namorado erudito e abusivo de uma mulher que tem a violência e a depressão como constantes em uma vida sofrida. E Deborah Levy é escritora, mãe, divorciada, senhora de meia idade que reflete sobre como tocar a vida de autora em um mundo moldado pelos homens. Personagens de livros recém-lançados, elas dizem muito sobre a história das mulheres de forma geral. Para cada uma há uma coleção de angústias, medos, obstáculos e situações pelas quais passam boa parte das mulheres do planeta.
Estranhamento
Quando escreveu Satisfação, a francesa Nina Bouraoui queria falar de uma mulher presa em situação na qual é obrigada a se confrontar com a própria condição feminina. Casada com um argelino, Michèle Akli vive na Argélia em um período conturbado. O país acabara de se tornar independente e os franceses não são bem aceitos, o que piora quando se trata de casais mistos. São os anos 1970, a Argélia se volta para as tradições abafadas pela colonização e a vida social das mulheres se complica diante das exigências religiosas e de costumes.
Entediada com o cotidiano doméstico, a personagem se volta para os cuidados com o jardim e com o filho, por meio do qual conhece Catherine, mãe de uma colega de escola do menino, também francesa, mas capaz de exercitar uma liberdade que Michèle deseja e não consegue alcançar. "É um romance sobre a condição dessas mulheres nos anos 1970, isoladas em um país machista, misógino, mulheres que olham de longe a revolução sexual acontecer em outro mundo ao qual elas não têm acesso", explica Nina. "Ela renunciou a tudo pelo filho, que adora, pelo marido, ela renunciou a ela mesma e se sente prisioneira do próprio corpo, ela tem dúvidas quanto à sua feminilidade e sonha com amantes imaginários."
Uma parte de Satisfação é dedicada às reflexões íntimas da personagem, mas há também no livro uma outra narrativa, uma perspectiva que sobrepõe a fragilidade psicológica de Madame Akli e a do próprio país, convulsionado por uma revolução. A saúde mental de um país, acredita Nina, pode "fagocitar a nossa". "A violência dos homens é um ciclo e ninguém está a salvo. A história me parece circular, e não linear. O homem tem uma necessidade louca de violência, de controle, de destruição. Eu acredito na boa saúde mental de um Estado para garantir a saúde mental dos cidadãos. E acredito no Estado justo, protetor, responsável, assim como acredito no poder do amor e da poesia", diz a autora, ao fazer um paralelo entre o período narrado pelo livro e a ascensão recente de governos extremistas em todo o mundo.
Abuso
A protagonista de Para onde atrai o azul é uma jovem que se encanta por um professor universitário muito culto e, aparentemente, muito doce e dedicado, mas o relacionamento não tarda a se tornar abusivo. A vulnerabilidade da personagem, vítima de violência na infância e de depressão, impede uma reação enérgica e protetiva. Escrito em linguagem extremamente delicada e poética, o romance de estreia de Jessica Cardin é também um soco no estômago. Com manobras de linguagem que misturam prosa e poesia, a autora consegue mergulhar o leitor na fragilidade da personagem, presa em uma teia de domínio e poder na qual mal consegue se movimentar.
Jessica escreveu o livro durante uma oficina de escrita criativa em 2018, mas há muito tempo publica poesias e textos em blogs. A fluidez de Para onde atrai o azul vem de uma profunda ligação com a música. "A melodia como soam as palavras, a combinação entre elas, acabo brincando com isso", conta. "Escrevo com o ouvido, busco essa sonoridade de como as palavras vão se combinar. Elas não ficam nas extremidades das frases, às vezes estão no meio do texto, é realmente muito em torno do ritmo, sonoridade, da melodia."
O tema, a autora de 31 anos revela, faz parte de uma busca que se repete em outros escritos. "Uma coisa que está clara é que meu grande tema é tentar entender a dominação e o poder. Essa dominação e poder acontecem em várias instâncias da sociedade, às vezes através de instituições, de maneira mais macro, de maneiras políticas, tem diversos instrumentos para o exercício desse poder", explica. No caso do primeiro romance, ela quis estudar o poder em um espaço micro, na relação um a um. "Usei personagens nos extremos, a figura do homem dominador, explosivo, e a figura da mulher completamente passiva. Meu exercício era tentar entender por que algumas pessoas passam por esse tipo de relação", diz. "Eu quis um pouco, também, mostrar que, em outros papéis da vida eles não são vítimas nem abusadores."
Trajetória
Quando a sul-africana Deborah Levy começou a escrever a Autobiografia viva, não sabia ao certo onde iria chegar. Também não tinha muito claro que se tratava de uma autobiografia. Pensou apenas em reunir algumas memórias, mas não de uma vida toda, em textos que refletissem sobre viagens, filosofia e outros temas. O resultado foi um conjunto de três volumes — Coisas que não quero saber, O custo de vida e Bens imobiliários — escritos em momentos diferentes da vida e que trazem o universo feminino como espaço de reflexão. "Foi a primeira vez que escrevi algo tão pessoal", conta Deborah, uma das maiores vozes da literatura sul-africana contemporânea, vencedora do prêmio Femina Étranger, três vezes indicada ao Man Booker Prize e membro da Royal Society of Literature.
Cada livro é dedicado a um período da vida da autora. No primeiro, ela escreveu sobre algo que não acreditava ser capaz de transformar em literatura. A infância na África do Sul, onde passou a adolescência, brotou de maneira espontânea, embora seja um período complicado da vida da escritora, filha de um ativista que lutou contra o apartheid ao lado de Nelson Mandela. Uma viagem a Maiorca, refúgio de Deborah, também está nesse livro, que traz considerações interessantes sobre por que escrever. "O primeiro livro foi dolorido em algumas partes, porque retorno à minha infância na África do Sul, eu não queria muito escrever sobre isso. Mas acho que encontrei uma companhia no livro", diz Deborah.
No segundo volume, O custo de vida, dedicado as 40 e 50 anos, Deborah se depara com o fim do casamento e a morte da mãe ao mesmo tempo em que vê a vida profissional alcançar o melhor momento. Enfrentar as convenções sociais, a maioria delas criadas pelos homens, e reencontrar sentido para a própria vida são desafios que ela passa a encarar. Em Bens imobiliários, a autora chega aos 60 anos acometida pelo desejo de ter uma casa própria. A construção do lar — não apenas no sentido físico, mas também afetivo — conduz a narrativa do livro. "Decidi chamar de Autobiografia viva porque era algo vivo, não algo velho e nostálgico. Foi assim que o primeiro livro começou. Então encontrei essa voz, que às vezes sussurra, fala alto, é suave. Há muita dor, às vezes, e outras vezes há muito humor. Isso começou a parecer vivo", conta.