Uma mostra que não apenas adianta a celebração do Dia Internacional da Mulher, mas ainda antecipa um cardápio de atrações em cinema chega ao Cine Brasília (EQS 106/107): Todas as Mulheres se afirma não apenas na diversidade de olhares e temáticas femininas. Vai além, de certa forma, embasada por alicerces no estabelecimento da data que saúda o gênero feminino. Em jogo estão elementos como esforço do operariado, mobilização trabalhista e lutas pelo direito das mulheres, sob ótica socialista. Temporada (de André Novais Oliveira) é a atração de hoje (2/3),às 18h10, com emblemática atuação de Grace Passô. Agente de combate a endemias, ela se muda para a periférica região de Contagem (Minas Gerais), enquanto administra perrengues no relacionamento com o esposo. Muitos dos filmes, selecionados na programação de Sérgio Moriconi, são inéditos em Brasília.
Também hoje (2/3), às 20h30, um filme de Bruno Safadi, estrelado pelo trio Isabél Zuaa, Renato Góes e Nash Laila, alinhava um mitológico drama universal: é Lilith, longa detido na vida da primeira mulher que habitou a Terra. Relutante aos moldes patriarcais, ela empreende vingança contra Adão e seu Criador. O inconformismo também demarca Fogaréu, filme do Centro-Oeste sobre a rebeldia de uma virtual herdeira do agronegócio. Dirigido por Flávia Neves, o filme teve pré-estreia, ontem, em Brasília.
A cidade reluz ainda na produção Paloma (de Marcelo Gomes), que traz a atriz Kika Sena, cria das artes cênicas da UnB, em primeiro plano. Ela foi a primeira trans a vencer o troféu Redentor (atribuído pelo Festival do Rio). A personagem Paloma encara camadas profundas de preconceito, diante da simples vontade se casar. Para além de longas, a mostra Todas as Mulheres trará exibição do média-metragem Me farei ouvir (Bianca Novais e Flora Egecia), e ainda dos curtas Escasso (Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meireles), À Tona (Daniella Cronemberger) e O mistério da carne, de Rafaela Camelo.
Amanhã (3/3), às 18h10, a programação contempla A felicidade das coisas, de Thaís Fujinaga. Estrelado por Patricia Saravy e Magali Biff, o longa retrata crises da maternidade de uma mulher disposta tão somente a trazer diversão para a família, em temporada de veraneio no litoral paulista. A garota radiante, de Sandrine Kiberlain, previsto para sábado (4/3), às 18h10, traz o tom internacional à mostra. Na trama, uma jovem tem um leque de oportunidades, numa época de anos dourados para a sociedade parisiense. Completam a mostra Raquel 1:1, de Mariana Bastos, que trata de uma moça religiosa em crise com suposta missão espiritual; Medusa, de Anita Rocha da Silveira, em que uma moça moldada por sociedade perfeccionista busca válvula de escape, e ainda o longa Clarice Lispector: A descoberta do mundo, documentário de Taciana Oliveira.
Entrevista/ Flávia Neves, diretora de Fogaréu
Qual a tua percepção do acolhimento de profissionais mulheres no audiovisual brasileiro?
Acho que ainda falta muito. O cinema é uma indústria muito elitizada e machista, conheço e vivi inúmeras situações, em que mulheres são deslegitimadas e desrespeitadas. Existe um modo de fazer que privilegia os homens, como em todos lugares de poder, que são majoritariamente ocupados por eles. É uma indústria poderosa, complexa e que circula um montante alto de dinheiro, logo não é um lugar para mulheres, em princípio. Mas nos últimos anos, estamos vendo nossos filmes se destacarem intencionalmente, mais especificamente em 2022, ano de lançamento do Fogaréu em festivais, pude perceber que os filmes brasileiros dirigidos por mulheres se equiparou em número, como os maiores destaques no cinema internacional.
Como tem sido a receptividade do filme no exterior?
Tem sido muito interessante. Já são quase 40 festivais pelo mundo, sempre acolhido como destaque. Claro que ser aclamado no Festival de Berlim faz muita diferença. Lá, o filme foi o destaque da mostra Panorama, uma das mais prestigiadas. Foi bastante elogiado e muito bem apresentado pelo festival, criando expectativa e frisson, saindo de lá com um dos prêmios do público. Por outro lado, acredito que nesses últimos anos teve, sim, um menor interesse pelo cinema brasileiro, devido ao governo que estava no poder, mas, mesmo assim, conseguimos chegar a vários países. O filme foi filmado, finalizado e lançado durante o governo Bolsonaro.
Tudo com amplo entendimento?
Ano passado, depois das sessões, tinha uma comoção dos brasileiros que vivem naqueles países, principalmente antes das eleições, todos se emocionavam muito com o filme, vinham falar comigo chorando. Tenho notado também um maior interesse pelo filme por países do Leste Europeu, nórdicos e anglo-saxões, não sei exatamente o motivo, mas tenho a impressão que o tom mais sarcástico, duro e de acerto de contas familiar, fala com essas culturas. É muito incrível contar uma historia tão regional e tão brasileira e tocar pessoas de culturas tão diversas e aparentemente distantes. O poder do cinema é enorme nesse sentido, é o nosso produto mais sofisticado, é diplomacia, é soft power.
Teu filme se relaciona a algum movimento ou temática coincidente dentro do novo cinema brasileiro?
A temática da luta de classes é recorrente no cinema brasileiro, mas é uma das primeiras vezes que é abordada a partir do olhar da classe explorada. O Cinema Novo foi muito criticado por abordar essa temática a partir de uma elite cultural. Acho que me sinto fazendo parte de um movimento de cineastas que emergem de classes historicamente excluídas, que vem se destacando no cenário internacional. Porque, às vezes, aqui dentro é mais difícil acessar os espaços que sempre foram ocupados pela elite cultural, principalmente as do Rio e de São Paulo. Alguns têm a sorte de serem "apadrinhados" por quem decide o que vai ser produzido e exibido. Eu tive que buscar uma produtora no Rio que produzia primeiros filmes, visto que em Goiás era muito difícil em diversos sentidos. Beto Brant foi o primeiro cineasta brasileiro por quem me interessei. Mais recentemente, alguns filmes foram determinantes para o cinema que queria fazer, como Som ao redor, de Kleber Mendonça Filho e Domésticas, de Gabriel Mascaro, entre outros.
Qual foi o treinamento dos artistas para se relacionar à neurodiversidade, tema explorado no filme?
O conceito de neurodiversidade tenta dar conta da ideia de que temos cérebros diversos, trazendo uma abordagem mais inclusiva, altruísta e menos capacitista. Somos diversos, logo somos plurais, singulares e isso é uma riqueza. Desde o começo do projeto, sabia que queria trabalhar com atores com alguma neurodiversidade. As alteridades são o foco do meu trabalho. E também porque acredito em um cinema que impacta a vida das pessoas envolvidas no projeto. Para mim, falar sobre a diferença é viver com a diferença. Criar conexões genuínas com ela e sair transformado do processo artístico. É fundamental que atores e equipes neurotípicos, sejam confrontados com a diferença e tenham que lidar com ela num ambiente profissional, sem condescendência ou paternalismo.
Como preparou o elenco?
Eu fiz uma preparação de elenco, com os atores neurodiversos e com os neurotípicos, juntos, partindo do mesmo lugar: do zero. Trabalhei com a técnica Meisner, que nenhum deles conhecia, e foi fascinante. Trabalhamos primeiro as emoções das cenas, e só na véspera da filmagem de cada cena, os atores tinham acesso ao roteiro. O texto foi a última etapa a ser acrescentada. Timothy, que faz o Ezequiel, é diagnosticado com autismo e TDAH, o texto era o menor dos problemas para ele, simplesmente olhava uma única vez para o papel e já sabia de cor. O mais difícil para ele eram as emoções. Lembro de me emocionar muito quando fui percebendo que ele estava cada vez mais concentrado, fazendo as repetições, que é um exercício em dupla que se baseia numa forte conexão, a partir do olho no olho. Sabemos que essa é umas das dificuldades dos autistas, o olho no olho, mas ao longo do processo, Tim revelou sentir emoções que nunca havia experimentado antes. Vilminha, que faz a Joana, e que provavelmente tem a síndrome predominante em Goiás, ao final da preparação estava dirigindo os atores neurotípicos. Isso é o que me motiva. Nunca tive que cortar por causa deles, a presença deles acrescentava à cena frescor e originalidade.
Com o novo governo, já percebeu sinalização ou iniciativas com tom reconfortante que se relacione ao cenário da temática levantada pelo teu filme?
Acho que já na posse, na subida da rampa, ficou claro que esse governo vai ser inclusivo, diverso, sinalizando uma clara oposição ao governo anterior. Em pouco tempo de governo, várias são as ações em direção às temáticas abordadas no filme. Sobre a existência de filmes como Fogaréu, posso dizer que sou fruto das políticas públicas dos 12 anos de governo de esquerda. Antes era muito improvável que alguém da minha origem social e geográfica pudesse fazer universidade no Rio de Janeiro e realizar filmes com a estrutura que tive em Fogaréu. E o governo anterior tinha o objetivo claro de impedir que isso voltasse acontecer. Até porque quando falamos, denunciamos nossa condição de excluídos. A Ancine foi sabotada. As universidades sucateadas, quase paralisadas. Agora, nos primeiros dias de governo, soube que a Ancine voltou a funcionar, e já houve o aumento das bolsas universitárias. Ainda sou uma exceção, mas acredito que em breve, com o retorno das políticas publicas, num futuro próximo teremos mais histórias contadas a partir de olhares e lugares mais periféricos.
O agronegócio, tema explorado em Fogaréu, apresenta só facetas perversas?
Como sou da capital do agronegócio, Goiânia, pude acompanhar com o passar dos anos essa cidade enriquecer com a destruição de tudo ao redor. O cerrado, nosso bioma mais antigo e o segundo mais biodiverso do país, talvez o quinto do mundo, corre o risco de desaparecer. Essa indústria só é interessante para poucas empresas estrangeiras, banidas no mundo inteiro, que despejam aqui suas sementes transgênicas, seus venenos, criando uma dependência dos seus insumos e inviabilizando outras formas de produção agrícola, nos territórios onde atuam. Pois matam o solo e envenenam as populações. Tive em Rondônia recentemente, e a epidemia de câncer lá já é uma realidade muito perversa. A saída? Temos a maior riqueza do mundo, que é a biodiversidade, que está sendo arrasada. Sem falar no impacto ambiental, que compromete a existência da humanidade. Nada pode ser mais absurdo do que isso. A biodiversidade pode gerar uma economia com muito mais valor agregado, gerando um mercado muito mais benéfico para a sociedade, para o mundo, garantindo um futuro. Com enorme potencial de geração empregos e renda em regiões onde as populações estão sendo assassinadas e expulsas. Podemos ser a potência nesse assunto, pois temos o que nenhum país do mundo tem.