Trocas equilibradas e pautadas por exemplos dados pela natureza, ações solidárias e propostas que impactam a comunidade. Essa linha de filmes é um dos sinais alentadores das produções recentes do cinema brasileiro. Esses filmes buscam formas estratégicas criativas para capacitar e humanizar o desenvolvimento da humanidade. É o caso dos documentários Biocêntricos e o premiado Quando falta o ar, atrações recentes do cinema, e da série Ideias para mudar o mundo.
No impacto do boca a boca, há teor revolucionário, como explica Cintia Revo, personagem da série Ideias para mudar o mundo (no Canal Off e no Globoplay), que criou a Revolução dos Baldinhos, há 14 anos atuante em comunidade de Florianópolis. "Há retorno, a partir de uma ação coletiva. Trabalhamos a realidade, o fortalecimento de território, na construção coletiva. O projeto de compostagem (base para o adubo natural) trouxe o retorno do zelo pela separação de matérias orgânicas e que serve de modelo para outras comunidades", explica Cintia.
Com exemplos extraídos de periferias, Leila Savary, criadora da série, optou por dar protagonismo a quem atuava em áreas marginalizadas e distantes de metrópoles, sem suporte de mídia. "Cercamos agentes com propostas transformadoras. Personagens fora da elite, do padrão estético e de qualquer estereótipo comum ao público", diz. "Tudo num caminho de lógica sustentável e respeitosa."
A série convida o público a conhecer exemplos de economia circular, colaborativa e solidária. "São modelos que consideram o impacto ambiental, a reutilização de materiais e a energia, a não exploração dos trabalhadores, cadeias de produção circulares e bens de serviço por compartilhamento como troca e doações", reforça Leila Savary. A diretora aposta numa sede de mercado: "Na mesma medida que a audiência consome desgraça, está carente de narrativas positivas, transgressoras que informem, eduquem e transformem". A série discorre sobre um hub de empresas operantes em favelas, sobre uma iniciativa com bicicletas e equipamentos voltados para mulheres negras e ainda aposta na difusão de novos padrões para acessibilidade.
Desinteressada nas camadas de poder que propagam a "cultura da desgraça", a série investe em modelos econômicos advindos de associações diferenciadas. "Precisamos entender que periferia e favela são potências. Nas comunidades estão os jovens, os agentes transformadores, pensadores e as oportunidades de mercado — nisso é que o poder público e privado precisam atuar. Esses espaços geram respeito, admiração e inspiração", pontua a diretora.
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Pela vida
"Já me senti muito, muito impotente como médica, por dificuldades como a da falta de estrutura ou da visão de colegas que não entendem a importância do SUS ou mesmo a valorização de enfermeiros e agentes comunitários", conta a codiretora do longa Quando falta o ar, Helena Petta, irmã de Ana, a outra diretora. Tal qual com a série Unidade Básica, da qual foram criadoras, elas viram a importância da arte para comunicar com eficiência e ultrapassar visões eivadas de preconceitos. Quando falta o ar venceu o importante festival É Tudo Verdade, tratando do trabalho de tatear a pandemia, feito por mulheres que extrapolavam procedimentos médicos e agiam a favor de cuidados emocionais, durante o primeiro ano de propagação da covid. O esforço contra visões individualistas e a revelação para pacientes de que a pandemia era uma questão coletiva, com a necessidade de cuidados coletivos marcou a visão de Ana.
Testemunhar a disposição das mulheres com a saúde pública se tornou uma experiência profunda para Ana. "O interesse coletivo me chamou muito a atenção no trabalho. As profissionais do SUS atuavam em meio a um governo negacionista. Nas atividades, elas dispunham de sensibilidade para o que reclamasse individualidade. Num complexo penitenciário baiano houve a que colocou uma música para um detento, no atendimento, e registramos a profissional que conversava com os pacientes entubados — sondando possível ajuda, uma vez que eram pessoas 'com alma' e que estariam ouvindo", relembra.
Depois dos momentos muito duros e de sofrimento, Ana apostou na intensidade de conexão com as entrevistadas. "Recentemente, vimos, em Brasília, essas mulheres extraordinárias, num encontro, por dois dias, de intenso afeto e conversa sobre a vida. Tenho vontade de estar próxima delas para o resto da minha vida", reforça Ana Petta. Com o filme, as irmãs defenderam, por nada, maquiar a realidade, repleta de imperfeição. Chegaram em comunidade ribeirinha na qual crianças não eram nem registradas e confirmaram a necessidade de incrementos na estrutura do SUS, "sem esconder lacunas e precariedade" (como diz Helena). "É um sistema que é fonte de muita beleza e de resistência. Sempre fui muito impressionada com a força que o SUS tem, apesar de todas as adversidades. A vontade de fazer o filme veio bastante por conta de olhar para a força de profissionais que muitas vezes não tem reconhecimento", defende Helena.
Entrevista com Ataliba Benaim, codiretor de Biocêntricos
Na demonstração da economia de recursos enfocada no documentário Biocêntricos, os diretores Ataliba Benaim e Fernanda Heinz Figueiredo explicam o princípio biomimético, escorado na percepção de que na natureza não existe desperdício de energia. Iniciativas como a reformulação do trem bala japonês, modelada pela eficiência de um pássaro pescador, reduziu 15% da energia despendida. Outro exemplo está na economia para o acesso a áreas degradadas para a ação de reflorestamentos, com a tecnologia do nucleário.
Qual o potencial da biomimética? Os temas do filme são amplos?
A biomimética tem muitos potenciais, a depender do uso. Há o potencial de convergir para diferentes áreas, realidades técnicas, tendências políticas e até mesmo visões de mundo. Convergência acoplada ao resgate de certas obviedades: só estamos vivos porque somos parte da natureza, numa rede complexa de trocas. Diante de entraves criados pela humanidade, que "chegou ontem" ao planeta, nada mais lógico que as soluções para esses problemas possam vir de uma forma de vida mais experiente — algo vinculado à rede de relações entre os organismos vivos. Vejo a biomimética como uma força centrípeta que pode nos unir na busca pela continuidade da vida.
Há combate à persistente visão de uma distopia?
Acredito que sim. Nunca na história da cultura humana produzimos e consumimos tantas narrativas distópicas. Nelas cultivamos algo que embasa a experiência humana, que é nossa pulsão de morte, num nível coletivo. Mas a balança me parece muito desigual na cultura contemporânea. Precisamos de mais Eros e menos Tanatos para vivermos em maior equilíbrio entre nós mesmos e entre nós e a nossa única casa, que é a Terra. Mais do que se opor às distopias com uma utopia, acredito que, no filme, investimos na oposição à pulsão de morte.
Conte, por favor, da participação indígena na fita, e em feitos desta conjuntura.
Está na origem da biomimética o resgate dessa ancestralidade associada, cujo padrão mental é anterior à arrogância antropocêntrica que produziu isso que chamamos civilização. Esse é o ponto de partida para o desenvolvimento de tecnologias que podem nos tirar de uma rota suicida. Como diz o grande filósofo Ailton Krenak, o futuro é ancestral. A nossa sorte é que ainda existem exemplos dessa ancestralidade entre nós, visíveis na vida cotidiana dos povos originários. Os Ashaninka, principalmente na figura do Benki, cumpre esse papel na narrativa de Biocêntricos. Benki é um líder aguerrido que, desde menino, dedica sua vida a fazer pontes entre as culturas e, nos últimos anos, a regenerar terras devastadas da Amazônia. Ele nos brindou com sua sabedoria simples e profunda nas conversas que tivemos enquanto estivemos na aldeia do seu povo. A frase que eu mais gosto dele é a resposta que nos deu quando o convidamos a expressar um pensamento sobre a humanidade: "O meu pensamento para o mundo é isso que eu estou fazendo."
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