Quando olha para trás, Matheus Nachtergaele tem a certeza de que foi um ator "plantado na tragédia dos palcos". Começou com Antunes Filho, ensaiando Paraíso Zona Norte, que nunca chegou a encenar, e queria elevar Nelson Rodrigues à categoria de tragédia. Foi um dos fundadores do Teatro da Vertigem, cuja intenção era repaginar uma das maiores tragédias da humanidade, o poema O livro de Jó. Mas quando começou a fazer televisão, o ator foi catapultado para a comédia. Então compreendeu a complementaridade dos dois gêneros. É a certeza de que tragédia e comédia são dois lados de uma mesma moeda, que ele leva para o palco do teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) a partir de hoje. Em cena, Matheus Nachtergaele vive Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière.
Com direção de Diego Fortes e texto da mexicana Sabina Berman, Molière conta a história de um embate clássico e muito conhecido no mundo do teatro: o confronto entre a tragédia e a comédia, representados por Molière e seu rival, Jean Racine. Sabina Berman é uma das colaboradoras do cineasta Alejandro González Iñárritu e criou um texto altamente conectado com a contemporaneidade para contar uma história do século 17. "As boas histórias sempre vão conversar com a contemporaneidade", diz Nachtergaele. "O fato de Sabina ser mulher e latina coloca em pauta várias questões da contemporaneidade, como a competição entre homens, o olhar para o mundo feminino. Na peça, as mulheres são libertárias e donas do seu destino. Mas, principalmente, o mais atual é a questão de a gente ir aos poucos entendendo que alegria e prazer não são sinônimos de pecado e que, se os governos tivessem apostado mais na nossa alegria, talvez a história do mundo fosse outra hoje em dia."
Nachtergaele contracena com Renato Borghi, que vive o bispo, em uma dramaturgia embalada por releituras de músicas de Caetano Veloso, outro toque contemporâneo da direção de Diego Fortes. "A peça é um prato cheio para quem quer conhecer a história do teatro", avisa o ator. "Molière é um dos maiores dramaturgos, um artista preocupado com seu tempo, que influenciou toda a comédia ocidental e mundial. É o pai da comédia ocidental como a conhecemos. Até Ariano Suassuna é confessamente um bebedor da fonte de Molière."
Jean-Baptiste Poquelin nasceu na corte, em 1622. O pai fazia artigos de couro para o rei. Crescido, o menino se tornou o dramaturgo preferido de Louis 14, o Rei Sol, que reinava pomposo e despótico sobre uma França absolutista e pré-revolucionária. Extremamente crítico e de humor muito ácido, Molière não poupava a corte nem a nobreza. Tinha um olhar corrosivo e, nas peças, zombava do próprio meio no qual fora criado, o que incomodou o clero francês e a realeza. Para destituir o dramaturgo do posto oficial tão cobiçado, o clero se une a Jean Racine, cuja especialidade, a tragédia, fora aprendida com o próprio Molière, de quem foi aluno.
A oposição e a complementaridade entre os dois gêneros é um dos pontos explorados pela peça. "A comédia é o prenúncio do trágico, é rir antes que aconteça, e a tragédia é a piedade do que nos acontece, independente de querermos evitar", explica Nachtergaele. "Não é que Molière foi traído por Racine, que é mau. É uma competição de dois artistas grandes. Racine era atrelado às raízes clássicas e Molière apostou todas as fichas nas críticas aos costumes ferrenhos. E muitos costumes permanecem entre nós, como a presença da igreja no estado, que a gente viu agora de maneira quase hedionda." Para o ator, o texto de Sabina consegue filosofar sobre o prazer e a dor, sobre o falso antagonismo entre ser feliz e ser pecador. "Essa oposição é falsa. Ser feliz e buscar o prazer não é equivalente a ser pecador. E buscar a seriedade, a fé cega, os costumes rígidos não é equivalente a ser um homem superior", acredita Nachtergaele.
Ele conta que a escolha das músicas de Caetano como trilha da peça, que é também um musical, tem origem nas raízes do próprio Renato Borghi, fundador do Teatro Oficina junto com Zé Celso Martinez Corrêa e muito ligado ao tropicalismo. "Achamos que o Caetano é muito semelhante ao Molière na liberdade de suas canções", explica Nachtergaele, que gosta de repetir a reação do próprio Caetano ao ver a peça no Rio de Janeiro. "Ele disse que achou que seriam suas músicas executadas, mas que eram sensações nascidas de dentro das músicas", lembra. Parte da inspiração musical para a trilha vem também da maneira como se tocava na corte da França do século 17.
Molière estreou em 2018. "Às vésperas de o Brasil escolher o neofascismo miliciano evangelizador e para nossa grande graça e surpresa ela só ganhou profundidade, conteúdo e crítica passado esse governo malfadado", acredita Nachtergaele. Com a pandemia, a turnê acabou suspensa para retornar agora, começando pelo Nordeste. "Foi muito emocionante, aproveitei para agradecer ao Nordeste, em cada sessão da peça, por nos salvar do fascismo. Fazemos a peça no sentido de comemorar uma democracia reinstalada", diz o ator.
Molière - Uma comédia musical de Sabrina Berman - A partir de quinta-feira (23/2), no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil. Até 12 de março, de quinta a sábado, às 20h, e domingo, às 18h. Ingressos a R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia). Não recomendado para menores de 12 anos.
Notícias no seu celular
O formato de distribuição de notícias do Correio Braziliense pelo celular mudou. A partir de agora, as notícias chegarão diretamente pelo formato Comunidades, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp. Assim, o internauta pode ter, na palma da mão, matérias verificadas e com credibilidade. Para passar a receber as notícias do Correio, clique no link abaixo e entre na comunidade:
Apenas os administradores do grupo poderão mandar mensagens e saber quem são os integrantes da comunidade. Dessa forma, evitamos qualquer tipo de interação indevida.
Cobertura do Correio Braziliense
Quer ficar por dentro sobre as principais notícias do Brasil e do mundo? Siga o Correio Braziliense nas redes sociais. Estamos no Twitter, no Facebook, no Instagram, no TikTok e no YouTube. Acompanhe!