Há 2 anos, a cantora Ana Cañas apresentava os primeiros contornos de um projeto que marcaria a própria carreira, um tributo ao cantor e compositor Belchior. Agora em 2023, o DVD ao vivo Ana Cañas Canta Belchior desfila uma mistura de canções clássicas e músicas “lado B” do artista cearense, além de listar a faixa inédita Um rolê no céu, com a qual Ana foi presenteada pelos filhos do músico. O single chega ao canal no YouTube oficial de Ana Cañas nesta quinta-feira (2/2), às 21 horas.
Antes de se tornar um DVD, o show foi apresentado em quase 100 palcos por todo o Brasil e indicado ao APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) na categoria de Melhor Show do Ano, em 2022. O registro audiovisual reúne canções como Monólogo das Grandezas do Brasil, Sujeito de Sorte e Coração Selvagem e totaliza 17 faixas.
No decorrer dos 83 minutos que compõem o DVD, Ana Cañas convida Ney Matogrosso para performar a faixa Paralelas. No caso da canção Antes do Fim, última música do disco Alucinação, lançado em 1976, conta com a participação do rapper Rael, artista que “tem a particularidade do universo ao qual pertence”, como define Ana.
Ao Correio, Ana falou sobre as sensações que este lançar o trabalho, sobre a relação com Belchior e a dificuldade dos artistas independentes para financiarem trabalhos de qualidade no mercado.
Entrevista // Ana Cañas
Você está orgulhosa de onde o projeto chegou?
Estou muito orgulhosa e vivendo o momento mais incrível da minha caminhada na música, já canto a 20 anos e sinto que foi um presente do universo esse encontro com o Belchior. Quando eu fiz a primeira live logo no início da pandemia eu não imaginava que eu fosse viver o Belchior, porque estou vivendo mesmo. O encontro com o público que o ama e é importante dizer que o Brasil tem o Belchior no coração por tudo que eu vi atravessando país, de praças pequenas aos maiores teatros, o que eu vi foram lágrimas emoções, pessoas cantando junto e acho muito importante que se diga que o Belchior está no nosso panteão das coisas mais importantes, ricas e maravilhosas que já foram feitas, a sua obra é monumental pois ele é um poeta genial e na minha humilde opinião precisa ser alçado ao lado dos cantores que celebramos como Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee. Belchior raramente é citado quando falamos dos maiores e o que eu posso atestar com a maior veracidade emocional da vida é que ele faz parte desse panteão.
Qual o sentimento de contribuir para a perpetuação do legado de Belchior?
Eu fico muito honrada, porque é um legado atemporal, perene, precioso, de uma envergadura filosófica, poética e metafísica muito sugeneris e eu acho importante que a gente fale que apesar do eu lírico do belchior não ser feminino, é importante quando uma voz feminina transmuta ou redimensiona para outras possibilidades de leitura a obra dele. Eu tenho uma proximidade muito grande com os dois filhos do Belchior e eu ganhei uma música deles de presente, uma canção inédita que foi escrita em 1987, mas que não foi gravada por ele e nem por ninguém e ficou na gaveta. A faixa se chama Um rolê no céu, que é um título curioso para alguém que já fez a passagem. Foi um momento muito bonito ver os olhos da Camila aos prantos, porque para nós o Belchior é o Belchior, mas para ela é o pai. O Belchior é tão maravilhoso que ele dá um jeito de se comunicar conosco até mesmo do além, no alto das estrelas, que eu tenho certeza que é onde ele está hoje trazendo uma mensagem mais uma vez poética sobre o amor. É uma canção que diz “Alô amor, Alô amor, mando-lhe uma mensagem do terminal do computador", tudo isso em um tempo onde não tínhamos celulares e o Belchior tinha uma capacidade de olhar além do espaço tempo e capturar as coisas essenciais por isso ele é tão atual. Ele entende os ciclos coletivos, quase sociológica e antropologicamente falando, porque ele era um pensador, para além da verve artística forte é isso que amo nele. Ele tem uma poesia muito profunda, rebuscada e refinada que deriva de um amor que tinha por poesia e escritores, mas ele era muito acessível, uma pessoa com muito carisma que atendia todo mundo depois do shows, então eu amo essa alquimia dele de ser profundo, poético e ser acessível. Para mim é uma honra, acho que Elis Regina, que também foi uma intérprete de Belchior, devia sentir isso quando cantava Nossos pais e Velha roupa colorida
Como você entende o público do Belchior?
Sendo bem honesta, eu amo gente e acho que o Belchior é meio assim também. Temos em comum o interesse pelo profundo e pelas coisas mais existências, no sentido de que as vezes estamos em lugares diferentes, mas existe algo que toca a todos, questões perenes que dizem respeito a todos os seres humanos do planeta. Me lembro quando era pequena e ouvia Whitney Houston e não entendia nenhuma palavra sequer, mas eu ficava arrepiada com a emoção dela. Posso dizer que o Belchior é um exemplo muito preciso dessa emoção, do que é o nosso país e da beleza amálgama idiossincrática do afeto. Ele é um retrato do que a gente mais tem de bonito. Eu nunca escondi que eu me apaixonei por ele, fiz a primeira live na pandemia sem saber direito o que estava fazendo, porém, depois me debrucei sobre o ser humano, a obra, a biografia, e a discografia eu descobri uma pessoas maravilhosa e incrível, um ser humano de uma sensibilidade muito ímpar e conviver com os filhos dele me reforça isso.
Qual a importância de medidas governamentais para artistas independentes?
Acho muito importante e fundamental para que se fomente cultura no país. O meu projeto do Belchior é o maior exemplo disso, porque desde o início o disco foi feito com financiamento coletivo em 2020. Fiz uma turnê linda e praticamente todo dinheiro que ganhei nessa tour eu usei para fazer o DVD. No final do ano passado eu até conversei com algumas marcas, mas a gente sentia uma instabilidade muito grande por conta do cenário político, estava acontecendo a Copa do Mundo e por precisar lançar resolvi abraçar como um projeto independente. Coloquei todo meu dinheirinho lá mesmo com muito amor e fui em frente como mulher independente na música e estou feliz. É importante termos fomentos governamentais, porém, eles exigem uma burocracia bastante extensa e geralmente levam bastante tempo e o nosso tempo da música é muito mais acelerado do que o do cinema, uma vez que há possibilidade de passarem alguns anos captando até o lançamento, então dificulta muito, mas quiçá agora teremos um novo governo que projete essa nova realidade e celebre a cultura como ela merece e precisa.
Estagiário sob supervisão de Pedro Ibarra