Com centenas de pessoas envolvidas nos bastidores de quase 54 anos dedicados à música, a madrinha do samba, Beth Carvalho (morta em 2019), trouxe um verdadeiro mundo de imagens e sons orquestrados pelo diretor Pedro Bronz, na feitura do longa documental Andança — os encontros e as memórias de Beth Carvalho. A motivação para a fita, atualmente em cartaz nos cinemas, extrapolou o mero contar a história da grande artista brasileira. "Quis trazer um entendimento à existência de um dado no cotidiano dela: sempre soube que ela filmou, registrou tudo o que estava à sua volta. Sabia disso, pela proximidade que eu tinha com ela. As pessoas não conheciam esse lado da Beth", conta Pedro Bronz em entrevista ao Correio.
Entre dificuldades de localizar compositores e músicos, a equipe conseguiu o financiamento do projeto com recursos em parceria com a Globo Filmes, Globo News, o Canal Brasil e a Ambev. "Obviamente, pagamos as pessoas ligadas à produção." Até o final da estrada, Beth continuou gravando para o rico acervo que traz até registros em super-8 e K-7, além de fotografias. "Continuou registrando, fosse com um celular, com uma mini-DV, com uso de todas as mídias. Inclusive, no final do filme, a gente mostra o Arlindo Cruz tocando numa imagem de celular. Beth guardava tudo; ela perpassou todas as mídias", explica o cineasta que traz no currículo a codireção de Herbert de Perto (sobre Herbert Vianna), a direção de A farra do circo (2013) e a montagem do longa Simonal (2019).
A artista que, em 53 anos de carreira, contabilizou 33 discos e quatro DVDs, eternizou hinos como Coisinha do pai e, numa frequência de visitas ao pagode da quadra Cacique de Ramos, garimpou representantes do samba como Jorge Aragão, Almir Guineto e Zeca Pagodinho, reservou boas anedotas na quase autocinebiografia. "Eu tinha uma relação com a Beth, a conhecia. Para mim, foi uma grande surpresa muita coisa — ela cresceu muito em tamanho. Com o filme, tive realmente a dimensão dela, ao mexer no material, e comecei a entrar fundo na história", conta Pedro.
Entre elementos como postura política — "isso veio da família: O pai dela foi preso, por causa de política; foi cassado" — que determinou um veio forte na vida da cantora, Andança mostra episódios da artista que confrontou a indústria fonográfica. No decorrer da fita, aparecem os problemas de coluna que a acompanharam por mais de uma década, o inconformismo com a elitizada classe média (da qual fez parte) e o alegre envolvimento com a periferia. A restauração do acervo de Beth ainda traz imagens inesperadas, como a do encontro cubano com Fidel Castro, a quem entregou um real autografado. Antes da morte, aos 72 anos, e fora do âmbito da pandemia, Beth, que foi tema de enredo de escola de samba, dada a atenção das enfermeiras aos problemas de saúde, que a obrigaram a cantar deitada em 2018, encomendou a Arlindo Cruz samba para as profissionais. Seguidora dos exemplos de Clementina de Jesus e Elizeth Cardoso, Beth, que revelou o Fundo de Quintal, entre outros feitos, é revelada na essência, pelo documentário: tudo é rico, com os pagodes na casa dela e no revirar das leis entre compositores dos morros e os empresários do asfalto, que ela ajudou a estabelecer.
Entrevista // Pedro Bronz, cineasta
Qual o volume da produção de imagens administradas pelo documentário?
Conseguimos reunir 800 fitas VHS da Beth, a maioria delas tem mais de duas horas. Contabilizamos mais ou menos 2 mil horas de material registrado, filmado ou ainda em áudio. A grande dificuldade do trabalho foi transformar essas duas mil horas num trabalho que levou anos. Primeiro, entendemos o que compunha esse material. Veio o processo de digitalização e transcrição. Na sequência, o processo de edição definiu o modo de contar essa história. Deu muita pena de não incluir algumas coisas, mas a gente vai trazer outros projetos com esse material. O filme é só o começo.
Houve muitas descobertas, no material analisado para o filme?
O material é todo feito de descobertas. Na verdade, só entrou o que considerávamos uma descoberta. Desde o Cartola mostrando, ao vivo, a primeira vez as Rosas não falam, desde o Nelson Cavaquinho mostrando também, ao vivo pela primeira vez, as músicas dele. Há uma música inédita do Manacéa, tem um show do metrô que era um show mítico que as pessoas falavam. Diziam que existia um show numa estação carioca, mas ninguém nunca tinha visto. No filme, há a imagem. O filme é essa reunião de descobertas.
O que orientava as escolhas dela?
A grande paixão dela era o samba, e faria qualquer coisa para chegar no samba. Por conta disso, ela acabou atravessando muitas questões que levavam à negritude, a questões de homens e mulheres (na música). Para chegar onde ela queria, teve que encarar muito, de frente e de forma muito natural. Há áudio no filme, em que diz que, aos 20 anos de carreira, ela se sentiu muito livre porque percebeu e entendeu a negritude dela. Ela reafirma, noutra parte do filme, que falta para o Brasil brasilidade. Na concepção dela, brasilidade é negritude. Ela carregou muito essa bandeira e é muito reconhecida pelo movimento negro, muito respeitada, por conta disso.
Qual foi o papel da bossa nova na carreira da Beth Carvalho?
Foi por onde ela começou, musicalmente. A bossa nova foi muito importante, como foi para todo mundo. O João Gilberto trouxe a nova maneira de cantar, e de tocar o violão, livre do que fosse empostado, como ocorria as grandes divas, como Elizeth Cardoso. Nisso, se deu a possibilidade de muitas pessoas que não tinham essa grande voz também sonhar e poderem se expressar, e cantar. Sem dizer que, musicalmente, a bossa nova é uma super base musical: as músicas são super complexas, com harmonias complexas. É preciso ter um entendimento musical para tocar a bossa nova: te abre realmente um jazz; te abre, musicalmente.
Há a despedida de uma mesa de som nas quais foram trabalhadas músicas como Saco de feijão, As rosas não falam e O mundo é um moinho...
Há um trecho com o Luiz Carlos T. Reis que foi uma despedida da mesa de som. Ali, vê mais um veio da Beth, com a questão do apego dela por objetos e pela memória. Ela vai lá e filma a despedida de uma mesa de som. É bem curioso, e não deixa de ser uma homenagem a esse grande técnico de som. Ele, junto com a Beth, foi um dos caras que criaram a sonoridade do samba de estúdio. Antes de Beth, a gravação do samba era muito precária. A Beth revolucionou também a gravação do estúdio.
Houve muita indisposição da Beth com a indústria fonográfica?
No âmbito da indústria, ela brigava com todo mundo. Beth foi uma das principais responsáveis numa transformação fundamental que foi a numeração dos discos. Antigamente, as gravadoras faziam os discos e botavam no mercado sem os músicos saberem das vendas — se tinham chegado a 500 mil cópias, e por aí vai. Tinham que confiar no que a gravadora dizia, e, muitas vezes, a gravadora roubava deles. A Beth encabeçou essa luta de numeração dos discos para melhor fiscalizar. Obviamente, as gravadoras não gostaram. Então, ela teve várias gravadoras e, no meio da carreira, começou, por si, a editar e gravar as músicas dela. Não só isso: distribuiu também. Ela começou a botar os discos dela nos jornaleiros. Teve essa ideia, e dessa forma, furou o esquema das gravadoras. Então, brigou com todo mundo que podia.
De onde veio a opção de deixar músicas inteiras no filme? Que critério foi esse?
Deixar as músicas inteiras, na verdade, veio do fato de serem muito boas. São incríveis, maravilhosas e, com o tempo de montagem, fui aprendendo que é para você cortar uma música, você tem que ter uma coisa muito boa para dizer. Caso contrário, você deixa a música acontecer — as pessoas ficam embaladas na música e acabam querendo ouvi-la inteira. Se você vai lá e corta, é um ato muito feroz.
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