Durante uma conversa na casa do Big Brother Brasil, a cantora Aline Wirley falou sobre o seu relacionamento com o ator Igor Rickli.
"Às vezes as pessoas julgam muito, não entendem exatamente. E é super compreensível elas não entenderem, porque a gente foi formatado para ser de um jeito. Mas é que dá tão certo, dá tão certo, eu sei como dá certo, como a gente é feliz, como a gente se ama, como é de verdade", disse Aline.
A declaração da participante do reality show foi feita ao comentar sobre o relacionamento aberto que mantém com o marido. No momento, ela conversava com outro participante do programa, o médico Fred Nicácio, que também tem uma relação semelhante.
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Em razão dos participantes do reality show, a monogamia e a não-monogamia passaram a ser ainda mais debatidas nas redes sociais.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, essas relações que fogem da monogamia tradicional têm se tornado mais populares nos últimos anos, principalmente em razão da difusão de informações sobre o tema.
"Acredito que a visibilidade desse tema tem aumentado sim, sobretudo a partir das redes sociais e outros ativismos. Isso tem contribuído para que mais pessoas tenham acesso a esse debate e expandam suas percepções", diz Geni Núñez, doutora em Ciências Humanas e conhecida nas redes sociais como Genipapos, onde fala sobre a não-monogamia.
Nas redes, diversos casais falam abertamente sobre relacionamentos que admitem que se tenha outros parceiros, seja apenas sexualmente ou até mesmo com envolvimento romântico.
'Continua sendo uma relação e temos prazer em estar juntos'
Um dos casais que falam sobre o tema nas redes sociais é a estudante Giovanna Rodrigues, de 22 anos, e o assessor parlamentar Luís Moreira, de 31.
Juntos, eles mantêm a página "Soluções não-monogâmicas", na qual compartilham a rotina e detalhes do relacionamento.
"A gente faz praticamente tudo o que um casal fechado faz, continua sendo uma relação e temos prazer em estar juntos, a diferença é que tiramos a parte de que ele só pode se relacionar comigo", explica Giovanna.
"Acredito que ela pode ser livre e feliz com outra pessoa também", defende Luís.
Os dois contam que nunca tiveram desentendimentos por causa de seus outros "afetos", como definem os outros parceiros amorosos.
"A gente só tem o combinado de avisar quando sair e se vai voltar para casa. Isso é mais por questão de segurança e para não deixar o outro aflito", comenta Giovanna.
O casal mora junto em um apartamento no Rio de Janeiro (RJ) e planeja se casar futuramente. "Principalmente porque no Brasil isso dá direitos e é importante como casal para termos um respaldo legal", comenta Luís.
O psiquiatra Manoel Vicente, de 32 anos, e o empresário Raphael Piza, de 29 anos, também têm um relacionamento diferente do convencional. Eles, que estão juntos há mais de 10 anos, definem a relação como "livre".
Os dois, que moram em Cuiabá (MT), se casaram no início deste mês, pouco antes de o psiquiatra participar da Casa de Vidro, do Big Brother Brasil. Manoel não foi escolhido para ingressar oficialmente no programa, mas a sua breve participação na disputa já fez com que a não-monogamia entrasse em debate.
"Até participar do programa, a gente evitava falar sobre esse assunto abertamente. Os meus amigos sabiam que nosso relacionamento é assim, mas a nossa família não sabia. Era algo mais reservado, aí veio o programa e a gente sabia que isso seria divulgado", comenta Manoel.
"A gente não escondia exatamente, mas não saía gritando aos quatro cantos (sobre a forma de relacionamento deles). Nunca foi um problema para a gente, mas havia a questão de as pessoas não entenderem", acrescenta Raphael.
Segundo eles, a família recebeu com respeito a informação sobre o relacionamento que mantêm. "A minha mãe deu uma resposta maravilhosa quando foi questionada sobre isso. Ela é completamente religiosa e também não sabia como é o nosso relacionamento. Mas depois do programa, quando perguntaram, ela disse que era melhor um relacionamento assim do que trair", diverte-se o psiquiatra.
O casal frisa que o principal conceito da relação é o de "prezar pela liberdade".
"No nosso entendimento, beijar outras pessoas não é uma traição. Traição é inventar mentiras para quem você ama", diz Manoel.
Ele e Raphael tinham um relacionamento fechado durante os quatro primeiros anos de namoro.
"A princípio, a gente não conhecia outros modelos de relacionamentos, por isso nem pensava em outras formas. Mas aí comecei a fazer algumas leituras sobre esses conceitos, vi alguns autores que trabalham diferentes formas de se relacionar e a gente embarcou nessa e vendo o que fazia sentido naquele momento", diz Manoel.
"A única regra que temos é que a gente não se envolve com nossos amigos de longa data, que são praticamente nossos familiares", acrescenta o psiquiatra. "No fim das contas, tudo se resume na cumplicidade e em não existir segredos entre nós", completa Manoel.
A não-monogamia
Para a psicóloga Geni, conhecida nas redes sociais como Genipapos, essas relações que fogem da tradicional monogamia fazem parte de um "antimodelo", no qual as pessoas deixam de repetir "valores massificados da monogamia como o único possível a todas as pessoas do mundo".
"A monogamia ainda se impõe como único caminho na maioria dos filmes, séries, livros, na igreja, na família e no Estado, então é muito interessante ver como muitas pessoas se sentem desconfortáveis com essa imposição e buscam outros modos de vida. Além disso, vivemos um momento em que globalmente as velhas e mesmas respostas não têm dado conta dos dilemas de nosso tempo e há uma busca por outras vias, a não-monogamia faz parte disso", diz Geni.
Uma reportagem da BBC Worklife em agosto passado abordou o crescimento desse tipo de relacionamento que foge da monogamia tradicional. O texto menciona que muitos fatores sociais e culturais levaram a uma maior adoção dos estilos de relacionamento não-tradicionais e que a pandemia também pode ter influenciado esse processo.
Mas, embora o interesse pelos relacionamentos abertos possa estar aumentando, não há dados sobre a sua real abrangência — ao menos, por enquanto, segundo a reportagem da BBC. No Brasil, por exemplo, não há um estudo aprofundado sobre a abrangência desse tipo de relacionamento.
E o tema é vasto. Dentro dessas discussões há diferentes tipos de relacionamentos e não há exatamente um modelo a ser seguido, cada casal costuma criar a sua própria forma de viver a não-monogamia.
As relações abertas são associadas a indivíduos que têm um parceiro principal, mas podem ter relações casuais com outras pessoas. Há especialistas que afirmam que isso se trata de uma mistura de monogamia (porque há um casal como principal estrutura) com traços de não-monogamia (pois há liberdade para ficar com outras pessoas).
Já um exemplo claro de não-monogamia é o poliamor, que significa ter diversos relacionamentos sérios ao mesmo tempo. Ou seja, não há um casal no centro desse tipo de relacionamento.
Essas mais variadas formas de relacionamento têm sido adotadas entre casais de todos os gêneros, idades ou orientação sexual.
"No Brasil, a gente usa a não-monogamia pra falar de um conjunto gigantesco de formas variadas de relacionamentos que recusam a exclusividade afetiva ou sexual. É uma forma mais genérica para falar que há um monte de possibilidades de relações livres", explica a socióloga e escritora Marilia Moschkovich.
Para a socióloga, que é adepta da não-monogamia há quase uma década, a monogamia é um modelo cheio de problemas e falhas.
"Um dos problemas da monogamia é dizer que a pessoa só pode ficar contigo, porque isso tira a autonomia sexual da pessoa, do próprio corpo e do desejo dela. Um mundo em que há autonomia plena das pessoas inclui o desejo, a sexualidade e não uma retaliação moralista", declara Marilia.
Os especialistas acreditam que esse tipo de relacionamento fora daquilo que é considerado tradicional deve continuar crescendo, porque cada vez mais as pessoas devem questionar a monogamia como o principal modelo da sociedade.
Ataques nas redes
Enquanto o debate sobre o assunto cresce, aumentam também os ataques àqueles que adotam esse tipo de relacionamento.
"Ainda há um grande pânico moral sobre o tema, muito julgamento e discriminação, há uma série de riscos em alguns contextos familiares, de trabalho", comenta a psicóloga Geni Núñez.
Recentemente, Giovanna, do perfil "Soluções não-monogâmicas", sofreu diversos tipos de ataques após compartilhar um vídeo sobre o seu relacionamento não-monogâmico.
"O vídeo tomou uma proporção muito grande. Muita gente me defendeu, mas recebi muitos comentários horríveis e diversas ofensas", lamenta a estudante. Ela denunciou o caso à polícia e avalia a possibilidade de processar as pessoas que a ofenderam.
"O nosso conteúdo sempre ficou na nossa bolha não-monogâmica e teve uma boa recepção, com poucas críticas. Acho que é a primeira vez que me deparo com tanto ódio", lamenta a jovem.
Apesar dos ataques, o casal não planeja parar de produzir conteúdo para a internet, porque acredita que ajuda a esclarecer sobre o tema. "Por causa das nossas publicações, recebemos mensagens de agradecimento de muitas pessoas que também são não-monogâmicas ou se tornaram", diz Luís.
E nos próximos meses, o assunto deve ser cada vez mais debatido no decorrer do Big Brother Brasil. Apesar de os especialistas considerarem que as discussões podem ajudar a esclarecer diversos pontos sobre o tema, há também receio sobre como alguns podem reforçar equívocos sobre essas relações.
"Uma preocupação que tenho (sobre a ampla discussão sobre o tema em horário nobre) é que como para muitas pessoas "a não-monogamia não funciona", já há por parte de muitos uma expectativa da falha ou do erro que confirmem sua profecia anterior. No caso da monogamia, a gente não vê isso. Ninguém diz: "conheço um casal monogâmico que 'deu errado', portanto isso é uma prova do fracasso da monogamia". Já com pessoas não-monogâmicas isso é muito comum", afirma Geni Núñez.