A linguagem impecável e a intimidade com a língua eram marcas das quais Nélida Piñon não abria mão, duas qualidades com as quais presenteou a literatura brasileira, que fica um pouco mais pobre. A escritora morreu neste sábado (17/12), aos 85 anos, em Lisboa, em decorrência de complicações após uma cirurgia realizada há 10 dias na tentativa de conter um problema nas vias biliares. Nélida estava internada no hospital CUF Descobertas, na capital portuguesa. “Foi uma partida muito tranquila”, conta Karla Vasconcelos da Silva, secretária e amiga que acompanhava a escritora há décadas.
O velório deve ocorrer na Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual Nélida é membro desde 1989. A instituição vai providenciar o traslado do corpo, mas ainda não há data pois a liberação envolve um processo burocrático complexo. Em nota, a ABL disse que fará uma homenagem à escritora. “O sepultamento será no mausoléu e a ABL fará uma Sessão da Saudade no dia 02 de março, no Salão Nobre, em homenagem à autora”, diz a nota. "Nélida foi uma das maiores representantes da literatura brasileira".
Nélida estava em Portugal desde setembro. Em Lisboa, participou das comemorações do centenário de José Saramago como jurada do prêmio que leva o nome do escritor e que é um dos mais importantes da literatura de língua portuguesa. Depois, viajou pelo país, foi à Galícia, terra natal dos pais e avós, fez uma conferência em Santiago de Compostela e visitou Barcelona. “Às vésperas de retornarmos ao Brasil, ela teve uma obstrução das vias biliares e precisou ser internada”, explica Karla, que conseguiu autorização para que a autora passasse os últimos momentos com as cadelinhas Suzy e Pilara. Nélida era filha única e não teve filhos. "Não tenho nada. Só tenho livros e afetos profundos", disse ao Correio.
A escritora tinha verdadeira paixão pelos cães. “Você não tem ideia de como cachorro é exigente. Eu sou responsável e eles são mimadíssimos. Fico deslumbrada com eles. Sou apaixonada. Adoro cachorro, e bicho. Cada dia desenvolvo maior afinidade com animal e compreensão de como eles sofrem nas mãos do humano. O humano é de uma crueldade”, disse, em entrevista ao Correio, em 2015.
Para Nélida Piñon, a esperança era uma “espécie de hábito”. “É preciso ter esperança para seguir arfando. O arfar humano é impulsionado por esse gesto de sobrevivência. Temos que ter a esperança de que vamos dormir, comer, falar, pensar, senão, a morte vem”, defendeu, ao falar sobre o relançamento de A República dos sonhos, em 2015. A esperança, ela desenhava com a linguagem em romances que contavam sagas e em ensaios que investigavam a memória e a própria existência.
Nélida Piñon começou a carreira com a pecha de “difícil”. O romance de estreia, Guia-mapa de Gabriel Arcanjo (1961), um extenso diálogo entre a protagonista feminista e o arcanjo Gabriel, foi considerado experimental demais à época. O tema religioso da obra acompanharia a escritora em muitos outros livros, incluindo O fundador, de 1969, que rendeu a ela o prêmio literário Walmap, o primeiro de 26 que receberia, entre nacionais e internacionais.
Em 1989, veio o maior reconhecimento em terras brasileiras, quando a autora entrou para a Academia Brasileira de Letras (ABL) para ocupar a cadeira de número 30, deixada por Aurélio Buarque de Holanda. Na casa dos imortais, Nélida foi a primeira mulher a assumir a presidência, em 1996. Ficou um ano à frente da instituição tradicionalmente dirigida por homens.
A obra-prima é, também, a favorita da autora. Em A república dos sonhos (1984), ela articula a linguagem poética com uma complexa estrutura léxica para narrar a saga autobiográfica de uma família que se muda da Galícia para o Brasil. Foi o primeiro romance traduzido para o inglês, marcando o reconhecimento internacional de Piñon.
No livro, Madruga é um galego que embarca em um navio rumo ao Rio de Janeiro na virada do século 19 para o 20. Um emprego na Praça Mauá é o ponto de partida do imigrante para a vida na nova terra e o ponto de inflexão para Nélida Piñon se embrenhar numa história bem conhecida entre seus familiares. Como se juntasse em Madruga todas as esperanças, medos, expectativas, aventuras e desventuras da imigração, a autora criou um dos romances mais importantes da literatura brasileira.
Além dos romances, Nélida também escreveu livros de contos e ensaios com reflexões e memórias. Uma furtiva lágrima, publicado em 2019, revisita a própria história e revela a visão da autora sobre sua trajetória e sobre a literatura. É nesse mesmo tom que Os rostos que tenho, entregue este ano à editora Record, aguarda revisão. O livro deve ser lançado em 2023.
O último romance de Nélida foi lançado no ano passado. Ela queria fazer um romance total. Um romance no qual os leitores “entendessem a gênese narrativa das Américas, de onde nós procedemos, quem somos nós”. Decidiu então passar um ano em Portugal. Gravetinho, o cão amado do qual não se separava, morreu em 2017 e dona Nélida achou que era o momento certo para passar uma temporada na terra de Camões. Para escrever o tal romance das Américas, que se passaria no século 19, mas com fortíssimas referências ao 15, ela precisava do contato direto e diário com os modos de vida portugueses. “Eu tenho uma sensibilidade muito apurada, entendo a analogia das coisas, analogia faz parte, enriquece a criação literária. Eu ia em busca das paisagens, dos resíduos de uma língua que eu precisava ouvir que vinha do século 15”, contou a imortal ao Correio, em entrevista concedida em janeiro de 2021, quando finalmente lançou Um dia chegarei a Sagres.
No romance, Mateus, o narrador, é filho de uma prostituta e de pai desconhecido. Criado pelo avô numa região rural, é um retrato do Portugal profundo e precário, mas ancorado na memória da pujança das grandes navegações do século 15, dos reis, infantes e impérios. “Visitei as aldeias e tudo que enriquecia minha imaginação. O imaginário é uma composição de todos os saberes. Isso foi extraordinário, eu tinha a impressão que estava convivendo com o infante, que ele me ditava regras do seus poderes, da expansão do império”, contou Nélida.
O último livro da imortal chegou às livrarias após 14 anos sem publicar um romance. Antes, ela havia entregue aos leitores Vozes do deserto, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Romance e de Livro do Ano em 2005, uma recriação feminista de As mil e uma noites. Nélida era uma escritora múltipla. Filha de imigrantes da Galícia, nasceu no Rio de Janeiro, em maio de 1937, e estudou jornalismo já decidida a ser escritora. Menina, vendia os textos para os familiares. Adulta, mergulhou na lapidação da linguagem para produzir os 11 romances e cinco livros de crônicas publicados ao longo de 61 anos de carreira.
*Colaborou Paloma Oliveto
Frases de Nélida Piñon
"Não aceito o conceito de que utopia é manejada pelos poderosos, grandes sonhadores, intelectuais. Acredito que cada qual tem o direito ao sonho modesto, pobre, que é uma utopia pessoal. Sempre achei que a imigração é um movimento utópico".
"O Brasil é um país abandonado à sua miséria. É que o povo é muito generoso, tem uma alegria natural, ri até sem motivo, mas ri. Canta, dança, tem movimentos estéticos fantásticos."
"Os animais, cada dia mais, ocupam um espaço poderoso na minha vida. Porque o tratamento que lhes é dado revela a precariedade da moral humana. Enquanto nós somos cruéis e carrascos em relação aos animais."
"Deus é uma resposta individual, cada qual estabelece uma aliança com Deus. Sou uma mulher de fé, mas nunca aceitei Deus como justiceiro, como alguém que subordinou minha consciência à vontade dele."
"Ao longo da minha formação, eu entendia que a literatura tem uma voz, parte de algum lugar, de uma geografia, mas não uma geografia circunscrita aos limites geográficos, de uma geografia que tem seus mitos, sua trajetória, sua língua, sua formação."
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