Cultura popular

Festival celebra música, literatura e cinema ligados à cultura popular

Festival Internacional Cinema e Transcendência aproxima cinéfilos e culto da arte do Brasil profundo, propondo amplo panorama que mistura música, literatura e expressões populares

Num diálogo com a exposição Movimento Armorial 50 anos, montada no CCBB, a nona edição do Festival Internacional Cinema e Transcendência, que reúne cinema, brincantes, palestras, teatro, oficinas, cortejos e música, tem início nesta quarta-feira (7/12) com proposta abrangente. Um entendimento do Brasil e de novos direcionamentos se afirma como meta, segundo o co-organizador (ao lado de Carina Bini) do evento André Luiz Oliveira.

"Pode parecer que nos desviamos da finalidade do festival, a transcendência. Mas é justo o contrário: apontamos para a compreensão desse Brasil que, felizmente, temos a possibilidade de mudar. A transcendência está na tomada de consciência de quem somos", observa o curador do evento. A possibilidade de reflexão e o norte de uma cultura "a ser desenvolvida, aprimorada e protegida, dentro desse Brasil novo, delineado no horizonte" traz o estímulo para o assentamento de uma cultura que toca o Nordeste. Compreender o chamado Brasil profundo extrapola a visão quinhentista de um novo mundo demarcado apenas pela descoberta de um novo mercado a ser explorado. "O acesso ao nosso festival será feito pela cultura popular, pelo cordel, pelo cinema, pelas esculturas e ainda pela visão do cangaço", destaca André Luiz Oliveira. Alguns destaques da programação ainda celebram a memória de dois ilustres brasileiros: o antropólogo Darcy Ribeiro e o cineasta Geraldo Sarno. Às 19h desta quarta (7/12), tudo tem início com a apresentação de Maísa Arantes (Duo Outros Sertões) e a exibição de filme clássico de Glauber Rocha (O dragão da maldade contra o santo guerreiro).

Entrevista: André Luiz Oliveira, cineasta, músico e idealizador do festival

Como despontou o tratamento para esta edição do Festival Internacional Cinema e Transcendência?

Uma conjunção de elementos levou à entrada na questão de explorar o sertão. Resultou do momento histórico que vivemos; nunca tínhamos pensado nisso. Nos nove anos de existência do festival foi a primeira vez que organizamos tudo com filmes brasileiros e portugueses. Muito veio da oportunidade de simultaneidade entre o que nos interessou e a exposição (no CCBB) dos 50 anos do movimento armorial. Esteve sugestionado o link os temas. Há, com os eventos, a oportunidade de conhecer um pouco desse universo encantado e místico do sertão brasileiro de Suassuna e ainda de muitos elementos que produzem essa mística sertaneja.

Que propostas serão desveladas com o evento?

Caiu a ficha gigantesca de que o o sertão é pouco conhecido com maior profundidade. Em seguida, vimos a questão dos 200 anos de independência, uma efeméride muito clara para o festival. Além disso, despontou o centenário do sociólogo, historiador e antropólogo Darcy Ribeiro. As coisas se configuraram por elas mesmas. Depois, viraram as eleições e aconteceu o que aconteceu para nossa felicidade, saiu essa sombra ameaçadora, ao menos a ameaça mais permanente foi espantada, para nosso certo orgulho. Partimos daí para compreender o nosso papel.

A poesia popular é um norte para o olhar incitado pela organização do evento?

O país da poesia popular é um ponto de acesso para essência do festival. Todos os filmes que serão exibidos são pontes de acesso à compreensão do Brasil profundo. Um Brasil que está encapsulado nesse outro Brasil, paralelo, que estamos vendo e quer se reafirmar todo dia: o Brasil consumista, colonizado, europeísta e desconectado da sua origem — envergonhado de sua origem cabocla, indígena e africana. Prezamos o Brasil que tem respaldo numa cultura popular solidificada e que tem sido atacado pela cultura rasa do consumismo e da descaracterização dos pilares do país. O Brasil tem raízes profundas na cultura popular, na arte popular. Lidamos, no festival, com artistas que sabem da qualidade essencial da manifestação da cultura popular e transformam isso em obras de arte, a exemplo do filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro (feito em 1969, e que abre o evento), porque o Glauber Rocha dá um exemplo de tudo isso, bem como visto na obra de Ariano Suassuna.

Por que a menção a relações subterrâneas entre Brasil e Portugal?

Palestras e alguns filmes que mostraremos demonstram que a gente não pode desconsiderar o português. Não podemos entender a nós mesmos, sem compreender o índio, o negro e o português. Claro (no Brasil), houve a imigração de europeus, alemães, árabes e holandeses, mas acontecida no Brasil depois do século 18. No festival, falamos de um Brasil profundo: isso tem que passar pelo projeto áureo português. O Brasil não era só um lugar para se explorar, era um lugar para se civilizar. O projeto incluía os povos originários e esse processo está ainda em curso. Sem entender a dimensão de cada povo que nos transforma a gente leva a todos a continuar sem entender esse país, e entender a nós mesmos. Aí é que o tema deste ano se encontra o tema dos festivais anteriores — na busca pelo autoconhecimento. Entramos num mergulho para compreendermos o país que estava à deriva. Compreender profundamente o país é absolutamente necessário para que a gente torne o país consciente. A questão da transcendência vem daí: superar as diferenças, superar tudo o projeto perverso de polarização em que a gente acabou caindo — por meio da transcendência.

Caboclo é um termo aceitável atualmente?

Caboclo é um termo aceito, hoje em dia, sim. Traz a mistura de raça que veio do português e do índio. Teremos um filme muito interessante (Nhô Caboclo e o elo perdido) do cineasta Hermano Penna, cearense, baiano e candango e que hoje está assentado em São Paulo. Penna aliás morou em Brasília, com uma relação forte com a cidade: ele que filmou cenas que estão no filme do Vladimir Carvalho, sobre a invasão da UnB; filmou, por trás de uma parede, a polícia entrando na universidade (num registro revisto em Barra 68). O filme que mostraremos trata especificamente do chamado Nhô caboco perdido. Então, o filme ajuda a não sermos permissivos com essa cultura da disputa, do consumo desenfreado, sem falar da agressão da violência, da falta de respeito com o outro. Nós somos um país miscigenado — temos no nosso DNA a aceitação das diferenças de forma incondicional. Tudo isso estará tratado no festival transcendência.

Para além do aspecto de exploração predatória, que dados pretendem focalizar no desenvolvimento das atividades?

O Brasil não esteve distante desse processo (de exploração). Dentro do caminho de ocupação espacial, houve uma miscigenação, numa mistura que levou a novas perspectivas de vida. No contato com os índios, que já estavam aqui, essa mistura criou uma cultura acabou acrescentada a dos negros que vieram da África. Nessa miscelânea de culturas das três raças. Tudo resultou no país diferenciado. Na consciência disso, temos que valorizar os três elementos dos quais somos frutos. Hoje vê-se uma valorização muito grande da questão do negro e da também da defesa dos índios. No tripé, não vejo o movimento por exemplo de interesse na cultura lusa, que trouxe o impulso primordial da civilização brasileira. No festival, mostraremos que aqui há um encontro de raças com tradições europeias, especificamente, a portuguesa. Vamos propiciar, por meio de palestras e filmes (alguns do celebrado Manuel de Oliveira), a compreensão de que aqui existia um plano para esse mundo novo, que não era só de exploração material.

Que acréscimos foram agregados à nação brasileira?

Existia aqui um plano civilizatório e isso se reflete no Brasil e no inconsciente coletivo brasileiro. Se apresenta em heranças das festas de todo o sertão brasileiro e também no sul, em manifestações populares recriadas em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, que têm festa do Divino Espírito Santo, uma coisa tipicamente lusitana. Revive no sebastianismo, por exemplo, que trouxe elementos para que o sincretismo brasileiro ganhasse uma força tremenda. Quase todas as manifestações populares têm raízes no Portugal medieval. São manifestações de profundo relacionamento com o povo. O povo assimilou o bumba meu boi, cavalhadas (de Pirenópolis). Filmes como Non, ou a vã glória de mandar (1990) e O quinto império, de 2004, (presentes na mostra) trazem a história de Dom Sebastião de Portugal (1554-1578) e como ele foi importado pelo Brasil. Há presença dele na cultura popular brasileira, em filmes de Glauber, como Deus o diabo na Terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (esse a ser mostrado no evento), que vem impregnado desse misticismo brasileiro incorporado com as profecias medievais portugueses.

 

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