Atitude! É assim que o artista plástico Sanagê Cardoso reage a insinuações preconceituosas. Ele reforça a bandeira de que o negro tem de se impor capacidade e competência para ser o que sonha. "O mundo é preconceituoso e a comunidade negra é apenas mais uma. Curiosamente, as pessoas que não me conhecem buscam destacar minha obra no entendimento de que sou estrangeiro. Não sei se ficam frustrados quando descobrem minha condição de carioca brasileiro", ressalta em entrevista ao Correio. Reconhecido no Brasil e no exterior, tem a capital do país como uma das inspirações afetivas e as ressalta no seu trabalho. "Quando olho ao meu redor, vejo que sou um privilegiado e me orgulho quando alcanço o propósito de enfeitar, no sentido romântico, a cidade", diz o escultor.
ENTREVISTA / Sanagê Cardoso
Como é ser um artista negro num meio dominado por uma elite branca e rica?
Não é simples, dentro de qualquer contexto, as estatísticas nos indicam o cenário de dificuldades.
Nossa remada é mais longa e mais profunda, os ricos se interessam pelos negros quando já estão com algum destaque e presença no cenário artístico, temos que subir um Everest todos os dias. Além do que, somos cobrados diuturnamente de forma implacável, vivemos uma sociedade que determina dois pesos e uma medida. Algumas vezes me falam coisas que fico a perguntar: "Será que essa pessoa sabe o que está dizendo?", "por que ela se acha no direito de falar/fazer desta forma?". E quando são inquiridas, dizem que estão colaborando e querendo o seu bem. Não são intervenções construtivas, mas visivelmente com o propósito de diminuir a negritude, talvez achando que aquilo é demais para você. Paralelamente, os ricos e novos ricos precisam abrir seus olhos para os artistas talentosos da cidade, porque investir em arte é um bálsamo que refresca nosso viver. Destaco, no entanto, o quanto é gratificante quando vivenciamos ações diferente de tudo isso!
Em 1978, você tinha como meta ser um fotógrafo profissional, quando decidiu buscar o caminho das artes plásticas?
Eu era um profissional com relativa presença no cenário fotográfico local, com uma produção para agências de propaganda e eventos sociais. No entanto, quando surgiram os equipamentos digitais me dei conta que não teria competência de continuar desenvolvendo um bom trabalho. Na ocasião, eu tinha uma obra autoral em torno de fotos de clipes, esse produto conhecido mundialmente, que sempre me intrigou pela sua eficiência. Logo, meu distanciamento tecnológico empurrou para o desejo de dar continuidade ao trabalho que vinha desenvolvendo de outra forma... É quando decido dar tridimensionalidade àquelas imagens abstratas. Então fui buscar formação técnica e acadêmica para materializar meu desejo, entrando para a faculdade de artes plásticas.
Em algum momento de sua carreira você sofreu algum tipo de preconceito?
Com certeza que sim, mas sempre de forma disfarçada e com falsos elogios, as atitudes me induzem a esse entendimento. O mundo é preconceituoso e a comunidade negra é apenas mais uma. Curiosamente, as pessoas que não me conhecem buscam destacar minha obra no entendimento de que sou estrangeiro. Não sei se ficam frustrados quando descobre minha condição de carioca brasileiro. O preconceito se apresenta em camadas sutis, inclusive dentro do seu recinto doméstico familiar, o que torna a ruptura muito mais problematizada. É difícil concordar e aceitar que pessoas do seu laço sanguíneo e na mesma condição social sua, ousem achar exagero o processo insano da discriminação.
Por que quase não existem curadores de arte negros? Falta formação ou é uma questão de exclusão mesmo?
O ritmo da música é o mesmo: distanciamento, preconceito, falta de visão social e mais um monte de coisas que estão na origem precisamos falar mais dos nossos negros heroicos no sentido da resistência de vencer e vencer. Os bons estão aí fazendo trabalhos primorosos. No entanto, a grande mídia, as grandes emissoras, os grandes grupos empresariais, só têm ações paliativas e modestas, que não oportunizam esses profissionais chegarem ao grande público, porque ninguém quer dar esse choque de realidade. Uma coisa todos temos certeza: já foi pior. O fato é que nosso desejo é acelerar as mudanças que começam timidamente a acontecer, pois desejamos viver esta nova realidade. Em todas as camadas e nichos existem negros de destaque que todos fazem questão de esconder, com os curadores não é diferente!
Quais são suas referências negras no mundo da arte?
A lista é grande, mas um personagem que destaco e que nos deixou recentemente — Emanoel Araújo (escultor, desenhista, ilustrador, figurinista, gravador, cenógrafo, pintor, curador e museólogo) — é, para mim, sinônimo do que é o poder negro. Ele ficou rico com o seu trabalho, dedicou-se verdadeiramente à causa negra, incentivou e ajudou muitos. Com sua verve e talento ocupou postos destacados, foi invejado, mas segurou firme e com determinação os desafios. Evidentemente que não podemos ser ingênuos de achar que todos podemos ser Emanoel, mas é um alento entender que é possível.
Você tem um DNA brasiliense forte em suas obras, como explica? Há uma harmonia entre os trabalhos e o ambiente em que está inserido, que remete a Athos Bulcão. É isso?
É tudo isso e muito mais. Minha vibração com a cidade é cinquentenária, quando aqui cheguei e decidi que não sairia mais. Aqui os guias espirituais vibram noutra frequência e, sem modéstia, digo que estamos na mesma sintonia. Quando olho ao meu redor, vejo que sou um privilegiado e me orgulho quando alcanço o propósito de enfeitar, no sentido romântico, a cidade. Consigo, naturalmente, ter a dimensão do meu trabalho e minha luta diária é fazer com que o público entenda a poética da minha obra, e que sua leitura leve à uma discussão pessoal ou coletiva, trazendo a escultura para um cenário mais amplo. Fico muito satisfeito quando me encontram em situações fora de Brasília e me dizem — "esqueci seu nome, mas sei que você é escultor e mora em Brasília". Não sei se sou um artista bem-sucedido, mas sei que trabalho de forma incansável procurando quebrar resistências dia a dia.
Como o Estado pode mitigar o débito histórico com os artistas negros? Criando um Fundo de Apoio à Cultura negra, por exemplo?
Vejo esta questão de forma ambígua, porque a criação de um fundo levantará e realimentará a discussão das cotas, no entanto, a dívida é grande e desproporcional. E aí? Como resolvemos essa dicotomia? Numa avaliação apressada, creio que todos os negros que demonstrarem competência no seu fazer profissional-social sejam destacados e incentivados no seu fazer. Acredito que não é a solução, mas é uma alternativa. Precisamos entender que tudo que envolva a comunidade negra é muito grande, consequentemente, precisamos ser cuidadosos para que a ação de propósito positivo não sofra um entendimento contrário, que prejudique toda essa comunidade.
Você acompanha artistas plásticos negros da periferia?
Eu vejo qualquer trabalho, independentemente da sua condição social. Acredito que esse tipo de discurso contribui para o distanciamento do trabalho e uma identidade próxima com o preconceito. Está enraizado na sociedade que todo preto, é pobre, favelado e analfabeto. É uma ruptura necessária, porém muito difícil de ser quebrada, levaremos muito tempo para resolver essa questão, porque o componente psicológico fala mais alto. As pessoas precisam de muito argumento para acatar/aceitar uma verdade negra. O Brasil é rico de talentos negros, destaco que, por princípio, o negro busca esmero e qualidade no que faz porque não quer ouvir frases como "isso só pode ser coisa de preto" dentro de um contexto pejorativo. Por sua vez, entendo que o negro periférico, ou não, precisa se dar ao respeito. Precisamos entender o que é pertencimento, nada além do meu trabalho há de interessar.