Caetano Veloso sempre surpreende os fãs ao interpretar músicas de outros cantores. Foi assim com o clássico Sonhos, de Peninha, e agora o baiano nos apresenta o pastor Kleber Lucas com a música evangélica Deus cuida de mim, que alcançou 22 milhões na voz do religioso no Spotify. Em menos de duas semanas, o clipe oficial da música cantada por Caetano e Kleber Lucas já conta com 1,4 milhão de visualizações no YouTube.
"Caetano é referência para todos nós, temos muito mais similaridades que diferenças", destaca o cantor, em entrevista exclusiva ao Correio. Aos 54 anos, Kleber Lucas é integrante da Igreja Batista e tem no currículo um Grammy de melhor álbum de música cristã em língua portuguesa, em 2013, com a faixa Profeta da esperança. São mais de 30 anos de carreira e milhões de discos vendidos. Mestre e doutorando em história pela Universidade Federal Rio de Janeiro, o músico é atuante no combate ao racismo e ao fundamentalismo religioso. "Levantam o nome de Deus, marchando por Jesus. Uma linguagem muito belicosa. Profundamente beligerante", critica ele. Kleber Lucas é uma das atrações do show da posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.
Entrevista com Kleber Lucas
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Como a música pode ajudar a criar pontes neste país tão fragmentado?
A música tem este poder de criar pontes, a medida em que ela se propõe em ser uma mensagem de construção, uma mensagem conciliatória. Então, acredito que nesse sentido, a música é muito estratégica em criar laços de afetos e de consciência também. A música tem o poder de promover a paz.
Ser negro e evangélico numa sociedade tão preconceituosa é complicado. Como foi sua infância? Como lidou com essas questões?
Eu sou um homem negro e evangélico desde os 17 anos. Nasci na favela e saí dela com 19 anos. Com muita dificuldade, as favelas no Rio de Janeiro nas décadas de 1960 e 1970, não eram como as favelas de hoje. Não tinham recursos, quase zero recurso. Dentro de uma geografia de esquecimento. Você não é visto pelo Estado e, na época, não tinham muitas igrejas, nem católicas nem evangélicas. Tinha uma evangélica na favela em que nasci, vários terreiros de candomblé e de umbanda. Era ali que a gente socializava, crescia e tinha, minimamente, uma visão de mundo. Ali, que tínhamos acolhimento, comida e mensagem que nos dava o mínimo de consciência. Agora, é sempre um desafio ser negro. Hoje moro na Barra da Tijuca e convivo com os olhares de exclusão e intimidação. Negro no Brasil vive uma luta diária contra o racismo estrutural.
Tem muita gente que investe no ódio como ferramenta de promoção política, social e até econômica, como reverter essa situação?
Sim, tem muita gente que investe no ódio como ferramenta de promoção política, social e econômica. São duas questões. Existe uma inclinação de um projeto de poder, que quer se estabelecer a todo custo. E existem pessoas que estão dizendo que não aceitam isso. Hoje, no Brasil, as vozes nos setores periféricos estão sendo ouvidas. E, para isso, muitas vezes há necessidade de um confronto, intimidações, disputa de espaço. São dois cenários: um de movimento reacionário e, por outro lado, vozes periféricas excluídas da sociedade durante muito tempo que decidiram se levantar e se reafirmar. Sou muito a favor disso.
O fundamentalismo religioso é perigoso para uma sociedade, a negação do diferente se transforma em arma para inescrupulosos. Qual a mensagem que podemos dar para os jovens tão intoxicados com esse momento em que símbolos de matrizes africanas são queimados e destruídos?
Esse fundamentalismo religioso tem sido algo constante, principalmente no Ocidente nos últimos anos. Uma onda de intolerância, hostilidade, fundamentado e pautado em uma (suposta) defesa bíblica. Levantam o nome de Deus, Jesus, marchando por Jesus. Uma linguagem muito belicosa. Profundamente beligerante e isso está dentro do ambiente religioso. E se torna mais nocivo quando percebe que as pessoas não estão trazendo apenas ideias, e sim crenças. Trazendo um discurso de colonialidade. Isso tem sido uma constante no Brasil, França, Estados Unidos e Itália. É uma onda de fundamentalismo religioso que não consegue conviver com o diferente. Que não respeita a voz do outro e que não quer saber nada além do que aquilo que defendem. Então, elas vão para as ruas, estão incendiando carros em Brasília, tocando fogo. Muitas delas, têm uma Bíblia na mão, citando versículo bíblico. Até se ajoelham diante de atos não democráticos. Porque não aceitam o fato de o presidente, que não era desse ambiente, vencer uma disputa honesta, democrática. Tem até pastores — e isso é lamentável — colocando fogo na cidade. Porque é feito em nome de Deus, em nome de uma fé, em nome de um tipo messiânico de fé, que é totalmente pautada no fundamentalismo religioso. Essas pessoas acreditam nisso.
Falar de amor, de Deus, de perdão parece estar fora de moda hoje em dia. Mas grandes homens, como Martin Luther King, pregaram justamente isso. É mais fácil falar de raiva?
É muito mais fácil você incitar o ódio no coração das pessoas, porque o ódio se desobriga da compaixão, da fraternidade, da irmandade. O ódio sugere a morte do outro. Do diferente. Então, falar do amor de Deus, não parece uma coisa interessante para quem levanta a bandeira de intolerância e fundamentalismo religioso, da ideia de dominação, de um neofascismo, de ideias antidemocráticas. O ódio é muito mais interessante do ponto de vista de quem tem um projeto de poder.
Quais os seus projetos e planos futuros como cantor?
Eu sigo com muitos projetos. Tenho além do meu projeto pessoal como cantor, compositor, produtor musical. Tenho também um projeto que está saindo do forno, uma gravadora digital. Estou contando a primeira mão ao Correio. Mas é algo que acontecerá logo no começo do ano, estou feliz demais com isso. Com os projetos que estamos produzindo, e prontos. Apenas analisando alguns contratos e parcerias que chegaram para gente. Estou muito empolgado com esse futuro como produtor, não sou só cantor, sou compositor e produtor. Estou feliz e animado porque tenho descoberto também, por um lado vivo uma rejeição muito grande por parte de um segmento evangélico protestante que fizeram a defesa do governo derrotado, por outro lado tenho descoberto um grupo forte, progressista, gente que nem é de uma igreja mas já me conhecia, estou vendo isso nos números, estão crescendo e fico feliz demais com isso. Tenho música, fala e voz pra todo mundo e uma demanda para ser alcançada.
A música gospel é um mercado que está ganhando força no país. É uma ferramenta de cristianização?
É uma ferramenta de cristianização, mas também não deixa de ser uma ferramenta de crenças, visões. Ou pode ser uma música que tem uma proposta de fé. Fé, a gente não discute. Agora, quando você pega um instrumento lindo que é a música e tira o foco da fé e coloca o foco na beligerância e nas crenças, isso pode ser um grande problema. Mas pode ser uma ferramenta de evangelização. A pergunta é: que tipo de evangelização? Estamos humanizando as pessoas ou levando um tipo de mensagem carregada de crenças, tabus e preconceitos?
Como foi o encontro com Caetano para a gravação de Deus cuida de mim? Quais são seus projetos em 2023?
O meu encontro com Caetano se deu por ocasião do segundo turno (das eleições presidenciais), que teve como final a vitória do presidente Lula, eleito democraticamente. Fizemos uma campanha com a paródia da música do Tim Maia, que deu muito certo. Fui convidado pela Paula Lavigne e pelo Caetano para fazer parte daquela paródia. Foi algo que mexeu muito. Foi uma eleição muito difícil, Lula estava falando que foi a mais difícil da vida dele. E acredito que sim. Tinha um outro aparato fundamentalista, escatológico, messiânico, recurso que nunca tinha sido usado antes, no contexto na luta do bem contra o mal, metafísica. Grupos de extrema direita, falando que nós vamos descobrir quem é o Deus verdadeiro. Saiu do plano da democracia, do debate, da dialética e passou para um plano metafísico, espiritual. Foi muito desafiador. Fizemos uma música alegre, todo mundo cantando, feliz, alegre, naquela expectativa do retorno da democracia, da cultura. Em poder ver o Brasil sorrir novamente, projetos abandonados. A cultura brasileira está sucateada há seis anos. A possibilidade de ver o Brasil reconciliado com a cultura, com o pobre, com justiça para todos, isso é o reino de Deus. Não precisa estar dentro de uma igreja, ter nome de igreja. O Reino de Deus é isso: comida para todos, mesa farta, partilhada e justiça para todos. A gente se encontrou nesse ambiente de sonhos e vimos muito mais similaridades que diferenças. Caetano é referência para todos nós. Poder juntar esses dois nomes fortes (Lula e Caetano) em uma campanha com propósito para resgate da democracia, foi a coisa mais linda que já aconteceu na minha vida.
Além de Caetano Veloso, quais outros cantores você deseja trabalhar musicalmente?
Isso é uma surpresa que virá no segundo semestre, acredito que sairá algo bem bacana, de alguém que gosto muito. Estamos alinhando. Logo, logo darei notícias.
Como estão as suas expectativas, no que diz respeito ao show da posse do presidente eleito Lula? Você espera uma grande adesão e participação do público?
Para mim, será uma grande festa da democracia, da solidariedade, de um riso que foi silenciado durante seis anos, desde o golpe. Estamos com uma expectativa muito grande. Todo mundo do meio artístico que se encontra, se abraça como se nós conhecêssemos há muito tempo, vivêssemos sempre juntos. Acho que vai ser muito lindo, o presidente Lula tem uma história marcada por entrega, de amor pelo Brasil. Então, é um resgate da democracia, a alegria não vai parar, vai continuar. Estou muito feliz de fazer parte disso. Aproveito aqui para convidar todos os meus amigos, amigas, admiradores, fãs. Venham para Brasília! Porque será demais! "É muito mais fácil você incitar o ódio no coração das pessoas, porque o ódio se desobriga da compaixão, da fraternidade, da irmandade".
*Estagiário sob a supervisão de Severino Francisco
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