Cinema

Clarice Lispector, nos cinemas, tem documentário criado em primeira pessoa

Chega aos cinemas A descoberta do mundo, o primeiro documentário sobre a escritora, com direção de Taciana Oliveira e preciosos depoimentos de Ferreira Gullar, Maria Bonomi e Marina Colasanti

Ricardo Daehn
postado em 11/12/2022 07:15
A descoberta do mundo: documentário sobre Clarice Lispector -  (crédito: Cabelo Duro Produções)
A descoberta do mundo: documentário sobre Clarice Lispector - (crédito: Cabelo Duro Produções)

Do decifrar das vantagens de alguém ser bobo ao relato amável de freiras, assemelhadas "a pombas" ao coletarem conchas à beira-mar, Clarice Lispector mantinha o brilho dos textos acessíveis e envolventes. Dona de alegrias gratuitas, "a troco de nada", ela se revela ainda, enquanto esposa, multifacetada, como registrou o ex-marido Maury Gurgel Valente. Clarice era, por vezes, do povo, capaz de pedir conselhos literários ao cabeleireiro, quando das crises criativas, e, igualmente, original a ponto de dar nomes próprios aos lápis de cor que manejava. Ela se assumia uma "tímida arrojada". Apostando num "renascer" perpétuo, como grafou na literatura, chegava a idealizar uma situação em que se tornasse uma "leitora comum e interessada", nos livros por ela mesma escritos, como absoluta novidade.

Passados 45 anos desde a morte dela, em 1977 (em decorrência de câncer de ovário), o reavivar de sua figura sempre reluz. O acervo pessoal da autora se divide em dois lugares: na casa Ruy Barbosa e no Instituto Moreira Salles. Mas os espectadores de cinema, atualmente, podem decifrar muito da vida e obra de Clarice, por meio de documentário assinado por Taciana Oliveira: Clarice Lispector — A descoberta do mundo. Sem qualquer restrição da família de Lispector, e após 10 anos de trabalho, num "processo duríssimo", Taciana se assume feliz com o longa. O roteiro do filme foi coescrito pela biógrafa de Clarice, Teresa Montero, "um almanaque", na definição da cineasta. "Com o filme, não tive nenhuma censura da família. Só queria, e ouvi, amigos dela. Acho que é muito mais bonito o que se viveu na vida dela, essas relações e a literatura criada do que (explorar) lado pessoal de Clarice, que era livre e sempre assumiu suas relações", destaca a cineasta.

Esquiva, nos detalhados debates acadêmicos (Nélida Piñon comparece no filme para registrar inclusive uma fuga de Clarice da raia, que preferiu ir comer "frango e farofa" a encarar um debate de literatos), animada pela verve do carnaval, esperançosa na maturidade política do povo capaz de vir a "liderar os líderes", e distante do hermetismo, numa observação do editor e empresário Paulo Rocco. Essa é a Clarice que habita as telas.

 

Entrevista // Taciana Oliveira, diretora

 

O que te aproximou de Clarice? Estudos?

Não sou especialista de Clarice, sou uma leitora. Há especialistas no meio acadêmico, graças a Deus. Adoro é ler: meu primeiro livro, com ela, foi Água viva. Não conhecia quem escrevesse como ela. Aquilo me tomou, aos 19 anos. Depois, ela tinha vivido no Recife, e eu sou de lá. Sou filha temporã, e meu pai era da mesma geração da Clarice, quando se vinha para o centro para procurar alguma oportunidade. E a Clarice veio de fora. Em termos literários, costumo dizer que a literatura e a música me transformaram em uma pessoa melhor. E tudo faz muita falta, não é? Pena vivermos uma época em que artistas são demonizados, junto com o meio acadêmico.

Como era o trânsito de Clarice entre as diversas artes?

No filme, temos muito das conversas mantida entre ela e outros autores. Com Luiz Carlos Lacerda (o cineasta Bigode), ela chegou a produzir um roteiro de cinema sobre o conto O ovo. Ela adorava ir ao cinema, gostava de assistir a concertos. Tinha, inclusive, uma amiga bailarina, a Gilda Murray, para quem entregou A hora da estrela e pediu para que criasse uma dança. Houve um perfil criado em torno dela, nos últimos anos, de que fosse solitária e muito introspectiva. Lógico que ela tinha esses momentos, mas pelo o que a gente ouve, ela era uma pessoa que saía de casa, que se mobilizava, que ia para passeata. Ela teve uma ligação também com o teatro, tanto que alguns textos dela foram adaptados pelo Fauzi Arapi. E há paixão dela pela música, não é? Isso é visto logo na abertura do livro A hora da estrela, em que ela faz uma dedicatória a todos os compositores clássicos. Sem contar que a casa dela também era absorvida por obras de artesanato, de quadros.

Pensou em colocar atrizes interpretando no filme? Que recorte pretendeu?

Optei por colocar personalidades e leitores lendo os trechos da Clarice. Vi espetáculos ótimos com a Rita Elmôr e a Beth Goulart (que interpretaram Clarice). Mas optei em seguir um escopo no qual pudesse permitir que a Clarice contasse a própria vida dela. Justamente com aquela entrevista do Museu da Imagem e do Som em que ela conversa com Affonso Romano Sant'Anna, Marina Colasanti e João Salgueiro. Eu queria que ela falasse. Não queria que fosse outra pessoa. Quebramos um pouco aquela coisa da entrevista dela, na Cultura, em que ela estava muito pesada, muito fechada. No depoimento do MIS, ela brinca, muito mais à vontade, por estar entre amigos. Há uma entrevista com o Araken Távora na qual também está à vontade; com o cachorro, ela datilografando. Achamos uma Clarice mais leve. Há densidade na obra dela em vários aspectos, mas há um humor. As pessoas não se tocam da ironia muito fina publicada por ela no Correio Feminino ou como ghostwriter da Ilka Soares.

Qual faceta literária dela privilegiou?

Olha, A descoberta do mundo... Me baseei muito nas crônicas, né? Lógico que tem outros trechos de obras, trechos adaptados de outras obras da Clarice, como Água viva, A paixão segundo G. H. e ainda o Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Mas a grande maioria dos textos utilizados são de A descoberta do mundo, editado postumamente, a partir das crônicas publicadas no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1971. No A descoberta do mundo, em vários momentos, ela dialogava com seu público; ela se abria mais nessas colunas. São os textos mais pessoais, como As três experiências, a defesa dela para os estudantes, na época da ditadura... Textos assim. Acho que cada uma de nós tem um pouquinho de Clarice, não é?. Eu optei por deixar a Clarice falar e não criar o perfil. Fui costurando esses diálogos de Clarice com o Affonso Romano Sant'Anna, com a Marina e com o Araken. Há trechos dela, depoimentos de familiares. A gente não resgata só a Clarice, a gente resgata o Ferreira Gullar, o Lêdo Ivo, uma figura fantástica de uma docilidade, se emocionou bastante quando deu a entrevista, por ter convivido com a Clarice e o Lucio Cardoso. Dei sorte, eu peguei pessoas encantadas de Clarice.

Houve mito a ser derrubado?

Penso que as pessoas achavam que ela era inacessível, meio esquisitona. Nos depoimentos, as pessoas, principalmente leitores dela, me diziam que ela abria a casa, servia refrigerante e comida, bolo quando a conversa era sobre a obra dela. Houve uma ruptura na visão (que se tem dela) a partir do incêndio e da doença do filho de Clarice. Não é fácil você ser mãe e ter um diagnóstico de esquizofrenia de um filho. A sobrinha dela (Márcia Algranti) fala que ela foi ficando mais triste. Acho que também pesava o fato da Clarice só receber completamente direitos autorais depois de morta. Porque quando assinou com a Balcells, que era uma agência espanhola que cuidava de outros autores do gabarito de Gabriel García Marquez, ela morreu. Você escrever, ser conhecida, ganhar prêmios; mas mendigar para receber os seus direitos?!

Como se deu a ascensão dela junto a homens escritores?

Maria Bonomi disse que a Clarice coloca a mulher num ponto de referência. Não existia aquela coisa regionalista, à época, ela vai para outro patamar. A convivência com outros era de muita amizade, com o Fernando Sabino, o Paulo Mendes Campos, o Otto Lara Resende. Uma geração a acolheu. Antes do boom de editoras de escritoras, tudo era mais desafiador. Houve alguma crueldade com a Clarice, na questão de receber direitos. Nos últimos anos, tem se quebrado isso de que literatura fosse só para uma camada social. Livros têm que chegar a todos. Eu fui a alguns eventos, por exemplo, em que existia um certo preconceito de Clarice não chegar às periferias. Eu acho isso uma bobagem. Eles chegam, e muito! Eu vim da Bienal do Ceará, artistas periféricos a citam, autores periféricos de Pernambuco, também. Ela tem sido redescoberta de outra forma. Ela não é só a Macabeia. As pessoas tinham que observar mais a Clarice como contista. Ela é excepcional. Existem poucos contistas como a Clarice! Sim, A paixão de G.H. é maravilhoso, claro. Mas ela é muito ampla.

Há significativa construção de Clarice no universo masculino?

Ela transita por dois gêneros. O lado feminino se estabelece quando, por exemplo, a gente pega os contos Amor e A Fuga, e aí a gente já tem uma abordagem da Clarice questionando o que é o casamento, a forma tradicional, como uma mulher é colocada dentro da sociedade. Há personagens masculinos na obra dela? Sim! Em A via crucis do corpo, um livro maravilhoso, há o conto O corpo, adaptado para o cinema. Naquele livro tem personagens masculinos. Acho que, na abordagem feminina de Clarice, há ainda a ironia. Por exemplo, ela cutuca um pouco o machismo. Num trecho de A hora da estrela, em que ela diz — o livro deveria ser feito por um homem, "porque a mulher lacrimeja bastante". Isso é uma ironia dela, ela cria um pseudônimo masculino para poder conceber o livro, numa ironia bem rasgante por sinal.

Detectou uma Clarice visionária?

Uma das crônicas que encerram o filme, eu conheci, por acaso. E eu acho que esse texto sintetiza muito, quando ela fala que a gente ainda falta muito, e a gente (agora) vive um retrocesso... É uma crônica da década de 1970. O que eu acho muito louco, aliás. E há outra, sobre o Brasil daqui a 25 anos, que é uma coisa muito dolorosa. Vemos quanto Clarice acreditava no futuro, e como a gente está hoje. Espero que possamos nos reconstruir e realmente voltar a seguir em frente.

 

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