Cinema

Festival indígena de cinema marca iniciativa histórica no Cine Brasília

Festival, a ser inaugurado nesta sexta, no Cine Brasília, reúne, pela primeira vez, a visão dos povos originários sobre o Brasil

Ricardo Daehn
postado em 01/12/2022 11:29 / atualizado em 01/12/2022 11:32
O Xingu em primeiro plano, num registro de Takumã Kuikuro -  (crédito: Takuma Kuikuro/Divulgação)
O Xingu em primeiro plano, num registro de Takumã Kuikuro - (crédito: Takuma Kuikuro/Divulgação)

Exposta no hall do Cine Brasília (EQS 106/107), no transcorrer do 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena, que, começa nesta sexta (2/12) e prossegue até 11 de dezembro, uma obra do artista visual Aislan Pankararu expressa o senso de comunhão pretendido com o evento. Feita com tinta acrílica e papel kraft, a atual obra mostrada em Brasília é resumida pelo artista como um fluido — "um rio, um caminho bem oxigenado, microcelular". "A obra retrata esse grande encontro e união de vários povos indígenas para a realização desse projeto audiovisual". Na intenção e no desenvolvimento, Aislan enfatizou um sentimento de força, na aposta de impacto, frente ao público do evento de acesso gratuito. Mais de 300 povos indígenas e pessoas com espírito de preservação do meio ambiente se vêm movidos pelo tema do encontro cinematográfico: Como cuidar da sua aldeia?

Quarenta filmes compõem a programação do 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena, o primeiro do gênero realizado no país. A curadoria destacou uma dezena de fitas em caráter competitivo. Uma das curadoras do pacote de filmes, Renata Tupinambá Aratykyra apresenta o conteúdo de algumas produções. "Grande parte conta das realidades indígenas atuais no Brasil. Quebramos generalizações, trazendo histórias do passado que também são parte do futuro e presente destas populações. Há demonstração das dificuldades e também a beleza das culturas dos povos dos realizadores destas produções", avalia. Ela observa que a curadoria apostou na pluralidade e em formatos diferenciados de filmes. "Entender o papel do cinema indígena dentro e fora da comunidade é essencial para a valorização das culturas, independente do contexto dos realizadores. Estar vinculado a um coletivo maior é o que amplia o sentido do evento", pontua.

Também curadora da mostra, Olinda Tupinambá (cineasta, produtora e ativista ambiental) conta que nos dois últimos anos, a produção indígena ganhou volume e visibilidade. "Notamos que os filmes têm circulado em nichos que não são propriamente mostras e festivas de cinema indígena", conta. Ainda assim, Olinda destaca que ficções indígenas tendem a não ser bem aceitas nos festivais, uma vez que é esperada produção indígena documental, ainda que existam produções de animações e séries de ficção. Com a falta de política pública voltada à produção cinematográfica indígena, que não conta com produtoras, cineastas originários captam recursos necessários com penosa dificuldade. Partidária de gênero fantástico, Olinda explica de entraves como o da dificuldade de distribuir a ficção Lili, produzida com recursos próprios.

Uma tentativa de inibição, vez por outra, é percebida por Olinda, caso da vez em que foi aconselhada a se “voltar para a natureza interior dela”, nas suas criações. "Há algo de denunciador mesmo de preconceito sobre o que nós indígenas deveríamos produzir", explica. Em seus filmes, com questões míticas presentes "de modo sutil", Olinda demarca um cinema indígena "em toda a sua concepção", que independe do retrato da realidade de aldeias, ou "do que as pessoas esperam que sejam essas realidades". Para o evento sediado no Cine Brasília estão previstas rodas de conversas, distantes de etnocentrismo, que contemplam nomes como Fernando Meirelles, Aurélio Michiles, Jorge Bodansky, Armando Lacerda e Luiz Bolognesi.

O idealizador


O 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena abraça a produção audiovisual de etnias Guarani, Munduruku, Payayá, Pataxó, Gavião, Borari, Waurá, Kaingang, Karapotó, Manoki, Krenak, Xavante e de mais 23 outros povos. A maioria dos filmes é na metragem de curta, explora o campo da docuficção e saiu da perspectiva de jovens realizadores. O Cine Brasília, que abriga a mostra, é palco especial para Takumã Kuikuro, cineasta e diretor geral do evento, que vê um “sonho" tornado realidade. Em 2011, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ele concorreu a troféu Candango com As hiper mulheres, que codirigiu. Anos depois, se afirmou como o primeiro integrante indígena no júri do prestigioso festival.

Ainda criança, Takumã foi fisgado pela câmera de vídeo, nas gravações da série Xingu, pela extinta TV Manchete, na sua aldeia, ainda nos anos de 1980. O atual festival trará a estreia do curta A febre da mata (de Takumã), em outubro, apresentado na Itália. O filme revela impactos do desmatamento e de queimadas na Amazônia. Junto com exibição de festejos dos 11 anos de As hiper mulheres (na presença de Kanu, protagonista do longa), o atual festival resultou em ações como a criação da Casa de Cinema (um espaço de arte, no Xingu) e o desenvolvimento de laboratórios de produção audiovisual. Entre outras atrações, o povo Munduruku, por meio do Coletivo Audiovisual Daje Kapap Eypi, trará filme sobre invasões sofridas , a partir da ação ilegal de madeireiros e garimpeiros.

"Desde que o cinema existe, o indígena estava do outro lado da câmera — só que como personagem dos filmes. Uma curiosidade é que, na obra que é considerada o primeiro documentário do mundo, o filme Nanook (de Robert Flaherty, 1922), o diretor retratou os inuítes, povo nativo do Canadá. Nós indígenas, sempre tivemos uma cultura oral forte e de transmissão de conhecimentos e histórias. Muitas delas contadas ao pé da fogueira, pelos anciãos. Com o tempo, passamos a ter acesso ao fazer do cinema, e a poder contar nossas histórias, só que do nosso ponto de vista", destaca Takumã Kuikuro.

Com o registro de cantos, histórias e festas do Xingu, Takumã incrementou o acervo de preservação indígena, como integrante da primeira equipe de cineastas do projeto de saberes tradicionais de Vincent Carelli, administrado junto ao Museu Nacional e a ONG Vídeo nas Aldeias. Um dos fundadores do Coletivo Kuikuro de Cinema, em 2011, ingressou na Escola de Cinema Darcy Ribeiro (RJ). Partidário de um conhecimento original, ancestral, como índice para o futuro, numa salvação para o meio ambiente, Takumã Kuikuro espera incrementar a autoestima de mais de 305 povos indígenas, num contingente em que mais de 900 mil pessoas se identificam como indígenas.

"É preciso que a gente siga o que é a ideia de aldeamento, o que é estar junto e fazer junto. O cinema me ajuda a viver e sei que tem muitos jovens indígenas que querem fazer o mesmo. Meu sonho é poder ver esse jovens, os que vierem depois de mim, conquistarem espaço, obter respeito e mostrar nossa cultura", finaliza.

 

Três perguntas // Renata Tupinambá Aratykyra, cineasta e roteirista


Como tem circulado a produção autônoma dos indígenas? As mulheres têm assumido muito do conteúdo dos filmes?

Há crescimento e retomada do protagonismo nas narrativas indígenas de diretores e roteiristas originários. Por meio de coletivos, em diferentes regiões do país, grupos têm se organizado em busca de reconhecimento, mesmo sem apoio. No caminho, há amor e fortalecimento de representatividade. Há pluralidade pela riqueza de visões culturais e universos cosmológicos dos realizadores dos diferentes povos. As mulheres, cada vez mais, ocupam espaço no mercado de trabalho e buscam autonomia em seus projetos. Urge fortalecer quem somos e não, ao contrário, sucumbir à ótica do colonizador. Devemos trazer nossas próprias metodologias e romper padrões com novos olhares sobre o cinema e tevê.

Existem apoios específicos para as obras?

Editais costumam ajudar mas, às vezes, realizadores indígenas acabam reféns de produtoras não indígenas, dado o domínio de execução e burocracia. Ainda existem muitas apropriações de narrativas e direitos autorais indevidos, mas há quem trabalhe de forma coletiva e respeitosa.

Como se dá a instrumentalização dos novos cineastas? Antepassados motivam criações indígenas?

Anciões e avós, sem dúvida, são quem mais nos inspiram em suas histórias orais. Somos povos de grande oralidade e o audiovisual contempla, de modo muito forte, nossa grande capacidade narrativa. Entre as mulheres, a cineasta Graciela Guarani (MS) é um grande nome no país; temos referências mais antigas como o Xavante Divino Tserewahú (MT), coletivos como Ascuri, projetos como Vídeos na Aldeias, Coletivo Fulni-ô de Cinema e tantos outros. Em outros países como Canadá, Estados Unidos e Chile, dentre outros, produções trazem equipes totalmente profissionais indígenas (em grandes produções). Reservation dogs (2021), criada pelos realizadores indígenas
Sterlin Harjo e Taika Waititi para a FX Productions americana, é uma série que é um marco para todos os diretores indígenas neste continente que estamos.


1º Festival de Cinema e Cultura Indígena

Cine Brasília (EQS 106/107). De 2 a 11 de dezembro, com acesso livre.

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    O 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena aposta na diversidade de olhares Foto: Coletivo Kuikuro de Cinema/Divulgação
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    Bastidores da produção indígena, Brasil adentro Foto: Coletivo Kuikuro de Cinema/Divulgação
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