As fotógrafas Usha Velasco e Débora Mazlow inauguram uma coleção de fotolivros dedicados especialmente a mulheres. Elas foram escolhidos em edital promovido pela editora brasiliense Estrondo, em projeto com patrocínio do FAC. Usha e Débora lançam, amanhã, às 17h, no Porão Livro e Café (405 Norte, Bloco D), respectivamente, os livros O normal acabou/Doente de Brasil e Laissez-passer.
O fotolivro de Usha nasceu da angústia e inconformismo com a situação caótica da gestão dispensada pelos governantes à pandemia no Brasil, nos primeiros meses de 2021, quando o país chegou a ter 4 mil mortos por dia. Reúne uma sequência de 20 imagens: 10 coloridas e 10 totalmente pretas: "Tentei contrapor as fotos coloridas, de tempos infinitamente melhores, com as bandeiras pretas, esmaecidas, de lugares detonados e frases de desespero por cima", comenta Uscha. "Não era somente eu ou as pessoas que estavam doentes, mas elas expressavam uma enfermidade mais profunda do Brasil".
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Todas as imagens têm como fundo a bandeira brasileira sobre a qual Usha inscreveu uma série de frases que garimpou nas redes sociais. "Contribua com a sua vida para que a gente salve a economia." "É um projeto de matar pobre". "Um governo sádico, o normal acabou". "Uma foice sobre cada cabeça".
Usha sempre se esmerou em fotografar bandeiras. As imagens do livro foram feitas entre 2003 e 2011. "Eu não tenho nenhum apego a bandeira nacional, o que sempre me fez fotografar é que acho muito tocante nas periferias, onde geralmente eu captava as imagens, as pessoas pintando a bandeira, enfeitando as ruas. Acho tocante o amor das pessoas pobres pelo símbolo de um país que as trata, historicamente, tão mal. Isso me emociona muito."
Na verdade, a fotografia entra como suporte no trabalho de Usha, fundado na colagem livre de imagens, palavras, signos e tempos históricos: " Fotografei múltiplos locais das cidades da periferia do DF. Misturo não só texto e fotografia, mas, também o individual e o coletivo, o tempo, o espaço, dois governos com posturas totalmente distintas".
Todos os elementos, signos e palavras se fundem em uma leitura crítica, comovida e indignada. Uscha considera fundamental que as imagens ganhem a permanência do livro em um tempo de fugacidade da informação provocada pela velocidade das tecnologias virtuais:"As coisas ficam na internet, mas vão se perdendo. Fiquei muito contente quando fui aceita neste edital porque essa história específica da pandemia a gente não pode esquecer. O que aconteceu foi um crime, centenas e milhares de mortes poderiam ser evitadas."
A dor dos imigrantes
Fotolivro viaja por trajetórias de família e traz dor, angústia e sensação de falta causadas por imigração e deslocamentos
O termo laissez-passer vem do francês e significa, ao pé da letra, "deixar passar". É também um documento, mais simples que um passaporte, emitido por governos ou organizações geralmente para cidadãos apátridas, para que possam transitar e usufruir, tecnicamente, do direito de ir e vir.
Um laissez-passer era o único documento restante ao pai de Débora Mazloum, autora do fotolivro que pegou emprestado o nome da expressão. O pai saiu do Egito em 1961, sem possibilidade de volta, e Débora procurou traçar e registrar em imagens, a partir do laissez-passer — que inicia o livro —, a trajetória que trouxe a família até onde ela se encontra hoje.
A autora define Laissez-passer como autoficção: "Ele traz uma certa fabulação da história da minha família, da história por onde alguns dos meus antepassados poderiam ter passado ou de fato passaram". A pesquisa também foi grande aliada na produção; como não possuía todos os documentos, ela coletou informações e arquivos de outras fontes, como a internet.
Nascida em família totalmente imigrante, dos lados materno e paterno, Débora fincou raízes em diversos lugares do país, e a migração e os deslocamentos estão presentes também na trajetória pessoal dela. Portanto, dar voz a isso e trazer angústias a partir da resolução proporcionada pelo fotolivro é processo libertador, que conversa profundamente com a poética da artista, além de trazer à tona dado político importante.
Apesar de ser baseado no trajeto do pai na década de 1960, as contestações continuam atuais. "O início de tudo isso foi por constatar que o único documento que a pessoa levava ao se tornar apátrida, ao ter que sair do país de origem, era um documento que dizia que ela não poderia voltar", comenta. Ainda hoje, Débora acredita que todo o problema atual de migração coloca as pessoas em situações de falta de liberdade, da falta do direito de ir e vir que, não apenas o laissez-passer, mas os direitos humanos tecnicamente teriam de fornecer: "Esse, na verdade, é um pouco o mote do fotolivro como um todo e um mote da própria pesquisa, um pouco essa dor, essa falta: a falta de uma casa, a falta de um país, que eu acho que é um pouco o que todo imigrante passa, seja ele nordestino que vem para São Paulo, seja ele um árabe que vem para o Brasil", finaliza. "É algo que universalmente une todas as pessoas que passam por processos de imigração."
Laissez-passer foi selecionado, junto a cinco outros livros, para publicação pela Estrondo, editora dedicada à publicação de fotolivros feitos por mulheres. Para Débora, esse espaço é muito importante nos tempos atuais: "Acho que cada vez mais a gente tem que ter esse lugar de fala, que vem também desse lugar geracional, de uma busca pelas nossas raízes, por aquilo que somos".
Serviço
Lançamento dos livros O normal acabou/Doente de Brasil, de Usha Velasco e Laissez-passer, de Débora Mazlow. Amanhã, às 17h, no Porão Livro e Café (405 Norte,
Bloco D).