Há oito anos, uma comoção tomou conta do Cine Brasília, palco do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que na 55ª edição, começa hoje. A exibição do filme ceilandense Branco sai, preto fica consagrou o cineasta Adirley Queirós. Com a exibição do mais novo filme, hoje, chamado Mato seco em chamas, Adirley vê cristalizada a verve dele para o que chama de etnografia da ficção (mescla de documentário com ficção), na qual desponta uma representação de pessoas reais que passam a efetivar lugar social que almejam. Junto disso, desta vez, virá a etnografia sensorial, empreendida pela codiretora do longa, a portuguesa Joana Pimenta, colaboradora de longa data de Adirley e diretora do The Film Study Center (Harvard).
Em agosto passado, o The Guardian brindou avaliação de quatro estrelas para Mato seco em chamas. O setor habitacional Sol Nascente serve de cenário para o filme que tem trilha sonora de Muleka 100 Calcinha. A adição de Pimenta, ao cinema de Adirley, como ele enfatiza, apontou para um progresso em seu cinema. Um cinema, sem ordem dirigista, diga-se de passagem, que, agora, em duas horas e meia de filme, coloca as atrizes Joana Darc, Lea Alves e Andreia Vieira a reposicionarem o feminismo ceilandense. As Gasolineiras das Kebrada, que representam, como lenda, prometem recondicionar papéis sociais. A fita é uma coprodução entre Brasil e Portugal, por meio das produtoras Terra Treme e Cinco da Norte.
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Entrevista / Joana Pimenta e Adirley Queirós
Quem dá norte à trama de Mato seco em chamas?
Joana — Para o trabalho, era fundamental o recorte das gerações das mulheres de Ceilândia, das filhas das mulheres que construíram a cidade. Quando houve a remoção de pessoas para Ceilândia, havia muitas mulheres que vieram do Morro do Urubu, que era um lugar sobretudo de prostituição, constituído durante a construção de Brasília. Essas mulheres saem grávidas ou com filhos pequenos e elas que levantam a cidade. Na verdade, os pais estão ausentes, trabalhando. Elas levam água para as casas, carregam os filhos, constroem os barracos. Estávamos muito interessados em trabalhar com as filhas dessas mulheres que, de verdade, tinham essas realizações. Nada disso ainda tinha sido abordado em cinema. São mulheres de 35 a 40 anos, que não têm papel de liderança nas ruas dominadas pela geração de jovens, com outro tipo de corpo, de forma de se vestir e de cultura. Pensamos em mulheres que fossem cowboys nas esquinas. Mulheres que viveram uma vida toda e trazem as marcas de uma vida vivida, marcas de políticas públicas de castramento.
Qual o mérito das mulheres na trama e nos bastidores?
Joana — Elas têm vontade de ressignificar suas memórias, suas histórias e as trazemos para um espaço de aventura. Pensamos nas três mulheres centrais como heroínas. Propomos a lenda das Gasolineiras para elas, num filme onde vão ganhar: vamos queimar o carro da polícia, vamos tornar a Ceilândia uma nação independente, vamos comercializar o petróleo, e a gente vai tirar pessoas da prisão. As atrizes que fazem personagens são essenciais. Chitara está conosco, desde a liberdade da prisão, tendo estado sete anos presa. São mulheres que, na vida real, são incrivelmente fortes, que eu respeito muito, que admiro, são incrivelmente humanas, sinceras e corajosas. Viveram uma vida de muita opressão, mas não foram presas pela opressão a que foram sujeitas. Tiram a força para se reinventar, por elas, tenho admiração monstruosa. São atrizes não profissionais que tomam o ofício por projeto de vida. O filme não é a vida delas, a gente construiu, juntos e repetiram a vida por serem atrizes inacreditáveis, com enorme frescor no recontar de suas histórias.
Como se deu o contato com Adirley Queirós?
Joana — Começamos a trabalhar juntos há oito anos. Primeiro, comecei na direção de fotografia do Era uma vez Brasília. Paralelamente, começamos a escrever e a fazer a pesquisa para o atual filme. Tomamos a decisão de colocar em prática, durante todos os 18 meses de filmagens, de não fazer concessão um ao outro não. Não tem plano, ou cena que eu achava que tinha que ir numa direção, e ele, noutra. O resultado seria sempre um trabalho dos dois. Houve, neste rigor, muito embate, discussões e brigas. Reinventamos muito, e, nessa partida,tínhamos muita energia um para o outro. Adirley é incrivelmente generoso com todos. Ele foi absolutamente incrível, ouve muito e respeita, tendo a curiosidade verdadeira pelo como outros veem e pensam. Ele se importa com a política, no cotidiano, das pessoas e é muito humano. Tivemos uma batalha diária pelo filme, na urgência diária da Ceilândia.
Qual ângulo favorece a Ceilândia cinematográfica?
Adirley — A Ceilândia, num certo sentido também é cinematográfica, diante dos filmes que fiz. Obviamente, falo de uma certa Ceilândia. Fizemos uma construção de transformar a cidade em espaços, em locações. A Ceilândia é cinematográfica, pela luz e pela construção da cidade. A Ceilândia surge como uma espécie de êxodo sofrido em Brasília. Está nas origens do surgimento: com gente expulsa, numa campanha de erradicação de invasões. A Ceilândia é cinematográfica por vários ângulos. Pelo ângulo da história do imaginário e na perspectiva da fotografia, de som e de dramaturgia. As casas, as lojas e os espaços abertos têm uma potência dramatúrgica.
Como tem sido levado Mato seco em chamas, no exterior?
Adirley — No exterior, está circulando muito bem. Já passou em mais de 60 festivais importantes. Tenho para mim que, em início de carreira, talvez seja o brasileiro, deste ano, que mais passou. Passou em Toronto, Nova York, Valdívia e Mar del Plata. A acolhida internacional é muito grande. Pessoas ficam impactadas com o filme. Nas premiações, pela tradição histórica, por ser eixo de documentários, o prêmio do Cinéma du Réel (Paris). Acho que, de nacional, só Santiago (2007) ganhou lá, além da gente. Ganhamos algo muito difícil. Estivemos no Indie Lisboa, e, pela primeira vez um filme luso-brasileiro ganha a mostra principal. As pessoas impactadas pela forma do filme, e não só com a história. A estrutura, com poucos recursos e com poucas pessoas, que é grandiosa, impacta muito eles.
A mudança de governo fortalece o apelo do filme?
Joana — Recentemente, mostramos o filme, passada a eleição. Foi no Forum Doc (MG), numa sessão maravilhosa, com debate longuíssimo e frutífero. A perspectiva, com a reeleição do Lula, é incrível, tipo, finalmente, a gente pode respirar um pouco mais fundo. A vitória quase que não acontecia. Estamos em um país dividido, e em dois extremos. Muito polarizado, com ascensão da extrema direita. A gente não acordou num Brasil diferente. Acho que o pode resultar num atraso para uma série de políticas contra formas opressoras, racistas, misóginas e de silenciamento total de tudo que não aderisse a uma ideologia de extrema direta. Sou portuguesa, mas falo a gente (brasileiros, risos). Podemos reconstruir, durante quatro anos. Mais importante do que a eleição do Lula, é o que vai ser feito por uma esquerda ou pessoas progressistas para fazer frente à apropriação total pelo que a direita fez das narrativas populares. Se não houver essa capacidade de reinvenção de progressistas brasileiros, daqui a quatro anos, não haverá Lula. Fico muito feliz, e tenho orgulho enorme de trabalhar no Brasil. Agora, o relógio foi acionado: temos quatro anos cruciais pela frente.
O filme tem amplo teor político?
Adirley — Política, em filme, tem sempre. Está no modelo de produção, na forma que a gente faz filmes. É extremamente político ter as pessoas com quem trabalhamos, no espaço em que a gente trabalha, no local em que filmamos. O político está aí mais do que num teor político partidário. Há uma política de território, também. A Ceilândia é transformada no imaginário das pessoas. Transformar lugares, em locação, espaço e tempo. Fazemos principalmente política de cinema, mesmo porque, se fazemos com dinheiro do Estado, é importante retornar essa política em forma de economia e de distribuição de renda.
Como tem sido as reações?
Adirley — As impressões das pessoas são muito interessantes. Tanto que os debates são muito intensos. Mar del Plata e Nova York trouxeram salas de conversas com quase mil pessoas. Tivemos sessões lotadas. Muita gente entra muito no filme, e vê tudo como uma forma nova de fazer cinema, de lidar com um filme. Normalmente, filmes têm outros modelos de produção. Eles falam muito do Brasil, pois mostramos mulheres extraindo petróleo, e a questão do petróleo vem à tona. Petróleo é político é a grande chave política brasileira inclusive.
Como está o cinema nacional, na tua avaliação?
Adirley — O cinema brasileiro é muito potente. Na instância independente, ele é muito potente. Os filmes brasileiros têm todo esse respeito lá fora. Tanto das escolas antigas quanto das novas. Ele circula muito e com muita força e despertando enorme interesse. Digo muito que o cinema brasileiro faz a diplomacia internacional. Falando em Brasília, falo dos meus filmes, dos de Dácia Ibiapina, da Denise Vieira, da Andreia Novaes, do Thiago Mendonça e do Erick Rocha - tudo cinema muito respeitado lá fora. Muitos fazem o filtro político brasileiro por meio desses filmes. O cinema está em pleno vapor e vigor. Mesmo com o governo (atual) tentando acabar com a força do cinema, ele não consegue, porque o cinema é muito mais forte do que isso. As imagens são muito mais interessantes no cinema. Ele segue firme e forte e tomara que seja mais forte ainda, pelas novas gerações que estão surgindo.
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