"Brasília ainda é um cemitério de artistas, aqui há baixa autoestima que costuma elogiar o que é e vem de fora; logo, para ser reconhecido com sua arte ou obra, é necessário ir para um dos dois grandes eixos", observa o diretor de cinema Pedro Lacerda que, com filme selecionado para o 55° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (que começa amanhã), desfruta de momentânea virada de perspectiva, pela animadora participação na Mostra Brasília, segmento importante do evento. Enquanto idealiza um corredor para a distribuição de filmes locais ou a aquisição desses pela TV Distrital, Lacerda celebra a janela para o filme Profissão livreiro, longa que trata da nova lógica no mercado literário, impactado pela tecnologia.
As origens da Mostra Brasília não passam batidas na memória de Lacerda, que conviveu com a realidade da capital de praticamente não produzir filmes. "Saía um longa ou outro curta, sazonalmente. Mas com a criação das leis atreladas à receita corrente líquida do GDF, que destinou muitos recursos para o FAC, a produção de filmes aumentou, sendo necessário criar uma janela exclusiva para os filmes da cidade que não eram selecionados na janela principal do festival", pontua o cineasta.
Mudanças, igualmente, permeiam a trama de Profissão livreiro: "No mundo do celular e das redes, as novas gerações de hoje já não leem mais em papel: está tudo no celular. No filme, mostro Ivan Presença e Chiquinho (da UnB) que, por legado, trouxeram para Brasília grandes lançamentos de livros e grandes escritores. Pessoas importantes dos governos federal e local eram recorrentes na procura do Ivan, para saber de lançamentos. Já o Chiquinho era uma espécie de consultor literário de professores e reitores da UnB", sintetiza. Quanto à Mostra Brasília (que distribuirá R$ 240 mil em prêmios), Lacerda não pode estar mais certo quanto aos aspectos profissionais do cinema local: até um medalhão da cidade, o diretor José Eduardo Belmonte, à frente do longa O pastor e o guerrilheiro, entra na disputa. No campo da mostra competitiva oficial, há dois títulos criados em Brasília: Mato seco em chamas (de Adirley Queirós e Joana Pimenta) e Rumo (de Bruno Victor e Marcus Azevedo).
Acompanhando a Mostra Brasília, desde 2011, o diretor Wesley Godim é outro diretor com filme selecionado para o evento, o longa de estreia, Afeminadas. Isso depois de tomar parte da festa do cinema, com os curtas Como se voasse para casa (2015) e Para minha gata Mieze (2018), que venceu prêmio de melhor roteiro, um impulso para o financiamento de Afeminadas. Wesley ressalta o privilégio de exibir o filme num espaço qualificado como o Cine Brasília (EQS 106/107, às 18h). "Graças a Mostra Brasília eu consegui uma ótima visibilidade e conheci muita gente interessante do segmento cultural de Brasília, pois ela faz parte de um festival de renome nacional e internacional", observa o diretor.
Afeminadas é norteado por lema de inclusão na modernidade — Nada sobre nós, sem nós. "Essa essência ativa a participação plena. Não se trata apenas de integração. Procurei realizar o filme (LGBTQIA+) sempre sem interferir ou guiar o tema em soluções previsíveis ou panfletárias. O filme é apresentado por eles (personagens) mesmos, sobre eles e com eles", demarca o diretor. A temática é vital, como reforça Wesley Godim: "A onda conservadora que parece querer se instalar precisa ter acesso a filmes e temas que mostram a humanidade das pessoas em assuntos que abordam a diversidade em sua mais ampla extensão. Lutas e buscas de cinco pessoas, "sem tentativa de análise sociológica ou antropológica", como diz Wesley, resultam na verdade do filme. "Quem vai juntar as cinco histórias dos personagens do filme, e perceber se é espinhoso, libertador ou autoconhecimento é tão somente o público", conta.
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Descontração
Com uma pegada "mais light" e menos pretensiosa, como reforça o diretor Filipe Gontijo, o longa Capitão Astúcia é outro título da Mostra Brasília. "A mostra tem que puxar o público da cidade, com espectadores mais diversos, para o cinema, sem ser apenas uma questão de se ter filme cabeça", diz Gontijo. Com roteiro afinado nos últimos sete anos, Capitão Astúcia teve inspiração em Dom Quixote, de Cervantes, e traz Santiago (Paulo Verlings), o pai dele, Rogério (André Amaro) e o avô (Fernando Teixeira, no papel título) encenando uma família que se reconecta. Prêmios de melhor filme, pelo júri popular, de fotografia e de roteiro fazem parte da trajetória do filme que chegou a um circuito de filmes fantásticos, no Peru, na Romênia e nos Estados Unidos, sem contar cidades como Porto Alegre e Vitória e ainda no Estado do Piauí.
"Apesar do olhar diferente, o filme é um drama familiar, entre neto, pai e avô. Tudo brota muito do fato de os homens não conversarem muito. Cervantes fazia alusão à loucura; hoje em dia, há loucura nas histórias de super-heróis. O avô da trama do filme lidava com histórias em quadrinhos, como letrista e tradutor. Nisso, ele criou uma grande fantasia que afeta o enredo. As pessoas saem emocionadas, ao final das sessões, e isso não exclui quem gosta dos filmes de herois", comenta Gontijo.
Mais heroísmo
Uma lacuna na representatividade de super-heróis que solucionem problemas de crianças levou o diretor Rafael de Andrade, com 15 curtas na carreira, à criação do roteiro de Super-heróis, curta integrante da seleção da Mostra Brasília. "Os heróis são os pais delas (crianças) — isto está no imaginário infantil. Pais resolvem muitos dos problemas que um Hulk não solucionaria. Para o filme, sem muito dinheiro, não dá para colocar heróis perfeitamente voando e tal. Daí, desenvolvi cenas que remetem a atrações da tevê mais simples, dos anos 70 e 80, como Spectreman e Ultraman", conta Rafael, que, além de diretor (com circulação de filmes em mais de 35 países), é pesquisador na área de engenharia de alimentos.Super-heróis se une a outros sete curtas-metragens em competição pela Mostra Brasília.
Entre nomes de cineastas como Tiago Foresti e Carolina Monte Rosa, estão Nathalya Brum e Augusto Borges, que defendem Plutão não é tão longe daqui (confira entrevista).
Atuantes na Aqué e 404 Produções, empresas de cinema, ambos dão a medida da vontade de descentralizar o cinema feito em Brasília. Chegam ao festival, com uma narrativaguiada por fotos numa comunidade distanciada do poder. Ambos diretores defendem a vontade de fazer um cinema autoral na periferia.
Igualdade
Produtora de Virada de jogo (curta de Juliana Corso, na Mostra Brasília), Núbia Santana também segue no embalo de um cinema que dê sequência à ressocialização e transformações. No filme, pesa o contexto de mulheres que lidaram com violência. "Damos voz para elas. Eu mesma, no sertão, fui carvoeira, numa realidade dura. Optamos por perfis diferenciados em histórias que convergem para a superação. São sete mulheres que se encontram na dor, na empatia, e que se identificam. Queremos inspirar outras mulheres", salienta Núbia. Lutadora, como presidente da Aprocine (Associação dos Produtores e Realizadores de Longas do DF), Núbia conta ter feito cobranças diretas para que a Câmara Legislativa retomasse prêmios e trâmites da Mostra Brasília. Ex-presidente da Aprocine, Vladimir Carvalho nunca deixa de ser inspiração. "Ele é um ícone, um mestre para gente. É uma emoção, um presente tê-lo, aos 87 anos, e cheio de energia, por perto. Meu estofo vem daí. Vladimir briga, e está sempre ativo. É ele quem alegra e cobra atitudes da gente", conclui Núbia.
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Entrevista / Nathalya Brum e Augusto Borges, cineastas
Qual foi a motivação para fazer o filme?
Nathalya — Fazer Plutão não é tão longe daqui veio da vontade de voltar a filmar em um cenário que, apesar de ainda pandêmico, ansiava por narrativas novas. Plutão surge com uma serie de reflexões cotidianas, ainda de conversas advindas de diferentes realidades mas com familiaridades relacionadas a vivências da nossa equipe. Vemos a vida como histórias não contadas que estão internalizadas em nós, corpos periféricos.
Que escolhas estéticas predominaram?
Augusto — Toda a equipe do filme é da Ceilândia. Todo mundo da equipe já comprou um salgadinho num bar da Deusa, alguns já participaram de campeonatos de fliperama em algum ponto da cidade. De alguma forma, todos os membros da equipe se enquadram no tema e se conectam em algum nível. A estética usada nas fotos, por exemplo, veio no senso comum de que fossem analógicas. O resto da estética do filme veio de referências de filmes que consumimos e não dá para deixar de fora a referência que é o Adirley Queirós também, que, junto da Simone Gonçalves, nos ajudou sempre que possível e ainda do aconselhamento da Joana Pimenta sobre a estética em geral.
Uma periferia real é algo pouco atraente? Por que foi necessário criar outra?
Nathalya — O fato da criação de Plutão, de uma forma fictícia, não passa de uma própria análise social dentro da história de Ceilândia, ou de como outras periferias se formam. Colocamos esta parte dentro da ficção, utilizando o imaginário, com elementos anárquicos e provocativos. Plutão é um grande personagem, ocupa seu espaço e busca suas contradições e carrega em seu cerne um povo que a todo momento é julgado por quem está por cima.
Qual o público a ser mobilizado?
Augusto — O público mais amplo possível, apesar da curta duração, é um filme político e com uma certa relevância para atingir várias pessoas. Mas ainda existe o público periférico, especificamente da Ceilândia, que é onde o filme foi gravado, queremos que esse público possa se identificar com a história, que é tão próxima de suas realidades e que de alguma forma possa se ver na tela.
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