Quem ouviu o compacto simples de Maria da Graça, em 1966, com as músicas Eu vim da Bahia, de Gil, e Sim, foi você, de Caetano, não tinha a menor ideia do que aconteceria poucos anos depois. Quando os mesmos Caetano e Gil foram convidados pelo regime militar a deixar o Brasil, foi Gal Costa quem assumiu a responsabilidade de levar a Tropicália em frente. E implodiu o movimento.
Fa-Tal - Gal a todo vapor, gravado ao vivo e lançado em 1971, é um disco que subverteu a música popular de uma forma muito mais radical do que propunham os tropicalistas. Era um grito. Um ato que deixava claro o inconformismo a partir de uma postura que misturava influências diversas, do blues ao rock psicodélico, sem esquecer o Brasil e a Bahia.
Gal estava anos-luz à frente. O disco, ainda hoje, é reconhecido como um dos melhores já gravados no país. Mudou tudo o que veio depois. E este é o tamanho da cantora morta ontem.
Gal não era apenas a voz límpida, precisa, aguda e extensa que havia acabado de se apresentar com João Gilberto e Caetano na finada TV Tupi, cantando docemente. Fa-Tal era uma explosão catártica que, por coincidência ou não, deu origem — ou pelo menos anunciou — uma outra revolução musical, muito mais ampla. No ano seguinte, 1973, uma série de álbuns redefinidores foi lançada, e a MPB nunca mais foi a mesma.
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De uma ou outra forma, Araçá azul, de Caetano, Manera, fru fru, manera, de Fagner, Quem é quem, de João Donato, Ou não, de Walter Franco, Pérola negra, de Luiz Melodia, e Krigh-ha bandolo!, de Raul Seixas, entre muitos outros, têm suas origens ligadas à permissividade positivista que Gal Costa inaugurou.
Teve mais. João Bosco e Aldir Blanc abriram sua picada, Hermeto Paschoal lançou seu primeiro disco gravado no país (A música livre), Luiz Gonzaga Jr. começou a incomodar os acomodados com seu Comportamento geral, Milton Nascimento desafiou cabeças com o Milagre dos peixes, e Sérgio Sampaio, literalmente, fez dançar com Eu quero botar meu bloco na rua. Além de tudo, João Gilberto deu o ar da graça com seu "álbum branco".
A própria Gal lançou outra joia em 73, o disco Índia, um corte para mostrar que podia mais. A descabelada de canto ríspido deu lugar a uma vocalista mais precisa e uma cantora ainda atrevida, que não teve pudor de mostrar os seios na capa do disco. Era uma época de libertação sexual, com Secos e Molhados rebolando e Dzi Croquetes nus e se assumindo gays. Valia tudo para desafiar o regime.
Mas a música vinha diferente, dirigida pelo amigo-irmão Gilberto Gil. De Cascatinha e Inhana a Lupicínio, Gal explorou o folclore português, Caetano, Tom Jobim e fez a curva para se transformar numa das mais populares cantoras do país. Daí em diante, abandonou o visual hippie e alternou clássicos com canções para tocar no rádio.
Sem deixar as raízes — seja cantando o repertório de Dorival Caymmi, ou fazendo turnê com os Doces Bárbaros, por exemplo —, Gal Costa nunca deixou de experimentar coisas novas. Foi ao cúmulo do sucesso com frevos e marchas de carnaval que tocavam o ano inteiro e canções de apelo popular de Sullivan e Massadas e, nos últimos anos, vinha se dedicando a se aproximar de novos artistas — de Marília Mendonça a Tim Bernardes.
No meio do caminho deixou discos antológicos como Caras e bocas (1977), Gal tropical (1979), um estrondoso sucesso popular, e especialmente O sorriso do gato de Alice (1994) e Mina D'Água do meu canto (1995). Fez um espetáculo só com música de Tom Jobim que foi transformado num álbum luxuoso, brilhante, em 1999.
Foi a voz de Gal que ensinou ao país que é preciso estar atento e forte e que não há tempo de temer a morte. Tudo com delicadeza, sem perder a fúria de uma tigresa.
Gal deixa uma coleção de gravações invejável, que vai mantê-la entre nós por muitos anos. Ainda se discute muito sobre quem é a maior cantora do Brasil, mas é bobagem. Feliz é o país que pode contar com uma Gal Costa entre elas.