O pan-africanismo, sob o ponto de vista da diáspora é o tema de Vestido de amor, álbum que Chico César acaba de lançar. Com 11 faixas, esse foi o primeiro disco do cantor e compositor paraibano, concebido no exterior e gravado na França. No projeto ele tem como convidados Salif Keita e Ray Lama, dois grandes nomes da música africana.
Em meados de outubro havia chegado às plataformas digitais o single intitulado Bolsominions, que Chico diz ser uma canção em defesa da fé cristã "e uma crítica a um grupo político de inspiração fascista que sequestrou de modo bastante hipócrita parte significativa das igrejas e o rebanho que processa essa fé". No primeiro verso ele canta: "Bolsominions são demônios/ Que saíram do inferninho/ Direto para o culto/ Para brincar de amigo oculto/ Com satã no condomínio". Ele acrescenta: "Os verdadeiros religiosos sabem que a crítica não se dirige a eles, mas sim aos vendilhões do templo, gente que cultua o deus dinheiro, as armas, a terra plana, a negação da ciência, a misoginia, o racismo e a perseguição à diversidade".
Reboliço, Sobre-humano e Sangô, forró e aí, são três das outras faixas do CD que trazem ritmos como coco, forró, rock, reggae, calipso jamaicano e rumba zairense, "com uma narrativa franca e lúdica para formação de um mundo mestiço, onde dançar sempre é possível", observa o artista nascido em Catolé do Rocha e formado em jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba.
Ex-secretário de Cultura do Governo da Paraíba, que recentemente cumpriu turnê pela Europa, onde fez uma série de shows, Chico Cesar é um dos artistas citados como possível ocupante do Ministério da Cultura, do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Em suas redes sociais, porém, ele, sugere os nomes de Jandira Feghali e Juca Ferreira, sociólogo que ocupou o cargo no segundo mandato de Lula, entre julho de 2008 a dezembro de 2010.
Que avaliação faz desses quase 25 anos de carreira, tomando como referência o álbum Aos vivos?
São 27 anos de carreira fonográfica, com 10 álbuns de estúdio e outros trabalhos conexos, então as pessoas já conseguem perceber qual é a expressão do artista. Não é algo que busca o hit- ainda que às vezes ele possa acontecer — é um trabalho de cauda longa mesmo. Ali já havia aboio, reggae, música em compasso seis por oito, que é o caso de Benazir. A gênese do meu trabalho é a composição, é a voz e o violão, e o que vem se somar apenas dá corpo à obra. A diversidade sempre esteve presente.
Quando e onde Vestido de amor foi gravado?
Vestido de Amor foi gravado em Paris e produzido pelo franco-belga Jean Lamoot, neste ano, e conta com a participação de músicos internacionais como Salif Keita, citado nos versos de À Primeira Vista, e Ray Lema, pianista congolês.
Como foi gravar o disco em um outro país?
Gosto de me entregar a situações novas e foi muito legal porque foi um encontro de pessoas que não estão nas suas casas. Trabalhei com músicos brasileiros como Natalino Neto, que tocou o baixo, e Zé Luiz do Nascimento que tocou a bateria, a percussão. Trabalhei também com músicos africanos, como a participação do Ray Lema. Mesmo estando longe de casa, gravando canções inéditas, foi um processo maravilhoso. Jean Lamoot é um produtor da escuta. Ele escuta muito o que o artista e músico estão produzindo, estão fazendo. Escuta inclusive as coisas que não vão entrar no disco e foi um processo muito interessante, muito respeitoso.
Você quis uma sonoridade diversificada?
Essa costura oceanográfica é o que caracteriza Vestido de Amor. O disco traz 11 faixas inéditas e abarca uma gama variada de ritmos, passando por coco, rock, forró, reggae e rumba, entre outros. Essa diversidade é intrínseca ao meu trabalho e se faz presente desde o meu primeiro álbum, Aos Vivos.
As canções foram compostas quando?
As canções de Vestido de Amor foram compostas nos últimos três anos. Boa parte delas surgiu no isolamento da pandemia, alguma coisa apareceu no Uruguai, onde passei três meses no início do ano passado em uma casa alugada com amigos.
O álbum tem um simbologia?
Vestido de Amor quer refletir um contrário de uma armadura, que serve para se esquivar, se afastar, se defender do outro. O que proponho é abrir o coração, abrir-se por inteiro, rasgar-se para receber o outro e também para explodir e contagiar o outro com essa auto-explosão.
Qual foi a contribuição de Salif Keita e Ray Lema para este trabalho?
Divido os vocais com Salif Keita em "Sobre-Humano". Salif me influencia diretamente na melodia, no modo de cantar. Ele escreveu a parte dele nos estúdios em Paris. Foi uma alegria imensa. Para mim, ele é como Milton Nascimento, uma voz muito especial, que ela mesma tem um significado incrível. Ray Lema é como se fosse um irmão mais velho meu. A gente tem uma relação de irmão mesmo e ele me disse que a música nordestina é a música africana e que Luiz Gonzaga é o mais africano dos artistas brasileiros. Então isso me deu muita tranquilidade pra sentir que forró e a música africana não se opõem, não são coisas diferentes. Então também quando compus durante a pandemia Xangô, Forró e Aí, imediatamente eu pensei em chamar Ray Lema para cantar comigo. Ray Lema trouxe a sua banda para tocar comigo essa música, para que ela tivesse um, vamos dizer assim, um aspecto a mais da raiz africana, da rumba congolesa.
Foi importante ter lançado o álbum como uma turnê pela Europa?
Eu tive a felicidade de fazer uma turnê muito bem estruturada, passando por várias capitais, cidades importantes da Europa, como Santiago de Compostela, além de Madri e Barcelona, também na Espanha. Fiz Porto e Lisboa em Portugal. Londres na Inglaterra. Berlim na Alemanha. Marselha e Paris na França. Foi muito bacana! Uma coisa que salta aos olhos é a qualidade de integração que tem a comunidade brasileira na Europa, porque há de tudo: muitos estudantes, trabalhadores, gente que está lá já faz 30 anos... O brasileiro tem muito orgulho da cultura brasileira, sente falta, sente saudade e quer mostrar para o povo europeu a qualidade da nossa cultura. Então a Europa acaba nos recebendo muito bem porque também é trazida pela comunidade brasileira que aqui vive.
Que análise faz sobre as eleições do Brasil?
Você tem um candidato que têm a máquina do governo, que tem um caráter intimidador e que, ainda assim, perdeu por uma margem de votos. Lula foi o candidato mais votado, porque representa a negação do fascismo. O Brasil não é um país que tem tradição do fascismo. O Brasil contemporâneo é um Brasil que se revela em sua face de intolerância. Esse Brasil que aparece agora é um Brasil intolerante, o Brasil do racismo, da misoginia, da homofobia. E sinto e penso que a democracia participativa, e não a democracia representativa, pode ser a grande saída para esse Brasil. Para que a democracia chegue de fato ao cotidiano, para que as associações de moradores, os sindicatos, os órgãos que representam a sociedade possam se sentir representados.
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