CINEMA/CRÍTICA

Filme mostra por que Racionais influenciou o destino dos negros no Brasil

Obra de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay extrapola a música. Banda ensinou milhões de jovens a sobreviver no inferno racista e a valorizar a própria cor

Roger Deff* - EM
postado em 27/11/2022 13:10
 (crédito: Boogie Naipe/Divulgação)
(crédito: Boogie Naipe/Divulgação)

O tão aguardado documentário sobre o Racionais MCs mostra como o quarteto mudou a forma como a juventude das periferias se vê e se expressa. Dirigido por Juliana Vicente, o filme apresenta a caminhada de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay desde o início, quando se conheceram na Estação São Bento, nos anos 1980, espaço da capital paulista essencial para a compreensão do hip-hop nacional. O grupo está entre os nomes consagrados da música brasileira.

Em 116 minutos, o filme "Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo" (Netflix) apresenta questões e fatos que não dizem respeito apenas ao Racionais, mas a todo um contexto social, racial, cultural e econômico.

Acompanhar a saga protagonizada pelos “quatro pretos mais perigosos do Brasil” (como eles mesmo se intitulam, não por acaso) é acompanhar o desenvolvimento de uma narrativa de pessoas pobres, pretas e faveladas sobre si mesmas, sobre a construção de todo um universo simbólico que envolve a superação das mazelas provocadas pela escravidão, violência racial e exclusão social num país em que verdadeiro abismo separa pobres daqueles que têm acesso mínimo à educação e moradia dignas.

Duplas, o começo de tudo

O filme traz cenas de arquivo raras, como apresentações de Brown e Blue, Edi Rock e KL Jay, quando eram duplas separadas, antes do surgimento desse símbolo quase mitológico que são hoje. O documentário aborda o começo do processo que levou ao surgimento de clássicos como “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”, primeiras gravações da banda recém-formada, na coletânea “Consciência Black Vol 1”.

Quando ouvi falar de Racionais pela primeira vez, devia ter 13 anos, e me impressionava quando encontrava pessoas que sabiam de cor letras complexas como a de “Pânico na Zona Sul”.

Havia uma postura, uma forma de declamar, que colocava jovens negros como eu num lugar diferente daquele a que estávamos acostumados, numa posição combativa e também de orgulho, algo raro naqueles tempos para a maioria de nós.

As discussões sobre consciência racial e orgulho negro circulavam basicamente dentro do Movimento Negro, formado por pessoas com acesso ao conhecimento, ainda que esse acesso fosse resultado de muitas lutas. Elas eram exceções. Muito antes de se dar conta disso, o Racionais fez com que essas questões chegassem à juventude muito distante daqueles espaços de discussão.

Quando fala sobre a responsabilidade colocada sobre o Racionais e sobre ele próprio, aos 19 anos, Brown comenta: “Eu não tinha nem chuveiro quente, como é que eu ia defender o povo?”.

O filme mostra cada período da trajetória do grupo por meio de seus seis discos – “Holocausto urbano” (1990), “Escolha seu caminho” (1992), “Raio X do Brasil” (1993), “Sobrevivendo no inferno” (1997), “Nada como um dia após o outro dia” (2002) e “Cores e valores” (2014). Ao final, a banda comemora 30 anos em imensos shows.

Cada período, demarcado pelos registros fonográficos, é habilmente explorado pela diretora, que apresenta o amadurecimento dos integrantes tanto no âmbito pessoal quanto artístico e coletivo, bem como os avanços e retrocessos da sociedade brasileira durante estas três décadas.

História do rap nacional

É importante frisar que a história do Racionais se confunde com a própria história do rap no país. Portanto, acompanhar o processo de crescimento do grupo é acompanhar o nascimento e o amadurecimento desse gênero musical, dado o grau de influência que os discos da banda tiveram sobre os MCs. Em maior ou menor grau, todos tinham e têm o Racionais como referência.

“Holocausto urbano” e “Escolha seu caminho”, os dois primeiros, são apontados por Brown como trabalhos que ficaram restritos a um círculo pequeno de ouvintes. A conexão com a favela e as pessoas de forma geral se deu com o terceiro álbum, o “Raio X do Brasil”, em 1993.

De fato. A música “Homem na estrada”, que sampleia “Ela partiu”, de Tim Maia, tocava em todas as principais FMs, atingindo tanto manos quanto playboys.

Naquele ano, lembro-me de ouvir mais pessoas do bairro falando sobre rap. Um vizinho do Beco das Antenas, no Jardim Alvorada, aqui em BH, comprou o LP. Nos reunimos na porta de sua casa, eu e mais dois amigos, Adriano e Reginaldo, ouvimos o disco inteiro em silêncio.

Era assim. Ouvir uma obra do Racionais pela primeira vez tinha ares de cerimônia, de ritual, da espiritualidade que KL Jay menciona no filme ao explicar o efeito que suas músicas têm sobre as pessoas.

Do desespero à esperança

Em “Sobrevivendo no inferno” (1997), trabalho considerado por muitos como o clássico maior da discografia do grupo, as falas e imagens remetem ao país violento, em convulsão. “Nada como um dia após outro dia” (2002) apresenta uma periferia esperançosa, com orgulho de si mesma.

Cada lançamento é tratado como um capítulo que demonstra como as músicas traduziram seu tempo e, mais que isso, ajudaram a moldá-lo. Destaco o papel que o Racionais teve ao tecer narrativas que não se limitaram a reportar sobre o tempo em que se vivia, mas contribuíram para mudar seus rumos.

A prova disso são os milhões de jovens que, apoiados naquelas histórias e exemplos, literalmente sobreviveram ao inferno e aprenderam sobre as próprias cores e os próprios valores.

Ter esta história registrada e compartilhada num espaço relevante, como a gigante do streaming Netflix, representa uma ruptura ao eternizar frases, faces e visões de mundo que, num país como o Brasil, foram silenciadas, violentadas e invisibilizadas desde que o primeiro navio negreiro aportou por aqui. Racionais no ar!

* Roger Deff é rapper em BH, mestre em artes pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) e jornalista pela PUC Minas

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