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Festival de Cinema: 'A invenção do outro' e a aventura de filmar na Amazônia

Diretor de 'A invenção do outro', último longa da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, fala sobre a aventura perigosa de filmar o documentário no coração da selva amazônica

Ricardo Daehn
postado em 19/11/2022 12:30 / atualizado em 19/11/2022 13:41
 (crédito:  De Bubuia Cine/Divulgação)
(crédito: De Bubuia Cine/Divulgação)

Ainda que previamente estude particularidades das etnias, antes de partir para o trabalho de campo com indígenas, o diretor Bruno Jorge se define, prioritariamente, como um cineasta que pratica antropologia visual, mas não um especialista em etnografia. No mais recente trabalho dele, A invenção do outro, selecionado para o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, há o desenho de uma jornada aventuresca, perigosa e incerta e que aponta para um encontro entre mais de 60 pessoas, no meio da floresta Amazônica.

"Xuxu (um korubo contactado em 2015), espécie de protagonista, teve parte de sua família assassinada nos conflitos com os Matis, incluindo duas esposas. Em 2015, se separou de seu grupo e foi capturado junto de outros parentes pelos Matis no Rio Branco. A maior parte de seu grupo de origem permaneceu isolada na floresta liderada pelo seu irmão mais velho Makwëx. A expedição da Funai foi com o objetivo de estabelecer contato com esse grupo, que é liderado por Makwëx e está formado por cerca de 30 pessoas", adianta o cineasta.

Integrado a todo o drama dos índios, uma personalidade marcante desponta na tela: a do indigenista Bruno Pereira, símbolo para a questão da preservação do meio ambiente, e ainda uma figura cruelmente vitimada em sua luta, tendo sido morto ao lado do jornalista britânico Dom Phillips, em junho passado. Por toda a última viagem de Bruno Pereira, no Vale do Javari, o cineasta manteve contato com o xará. "Ele me mandou fotos, vídeos, áudios. Depois de fazer a reunião com os Marubos, enviou, por fim, uma mensagem a partir de um satelital na mata dizendo que estava tudo certo para nosso próximo filme e faríamos, em setembro, uma viagem de mais de 40 dias juntos. Ele disse também que, tão logo chegasse à Atalaia, me ligaria", relembra. Nada porém se concretizou, diante dos assassinatos.

A invenção do outro, para além do registro de reencontros familiares, sedimenta um alicerce, na perseverança de causas pessoais. "Conheci Bruno Pereira no fim de 2018, quando ele era coordenador do departamento de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. Ele me convidou para acompanhá-lo na expedição. Não sei se é muito claro para as pessoas, em geral, o que significa para um documentarista de inclinação etnográfica filmar uma expedição de primeiro contato com indígenas na Amazônia. Eu não conseguia imaginar cenário mais propulsor de sentido do que isso pra mim. Entendi logo, no início, o tamanho que também tinha tudo isso para o Bruno", sintetiza o diretor.

Entrevista // Bruno Jorge, diretor

Qual foi a dinâmica de filmagens de A invenção do outro?

Comecei a filmar desde que cheguei em Tabatinga (Amazonas), na sede da Funai. Foram dois, três dias de preparação, até partirmos de barco. Por questões de produção da expedição, passamos por Atalaia e pela base da Funai do rio Ituí, e depois fomos para mais dentro da reserva, onde montamos o primeiro acampamento. Ali foi levantada uma estrutura maior, com heliponto e base da Saúde. Deixamos uma parte da equipe e adentramos mais no mato em duas voadeiras. Montamos um segundo acampamento, pequeno, de onde os seis korubos que estavam com a gente partiriam para a tentativa de encontro com os isolados, enquanto nós ficaríamos aguardando. Depois disso, colocamos as mochilas nas costas, dividimos a equipe em duas e partimos para longas caminhadas na floresta na tentativa de achá-los. Desde a chegada em Tabatinga até minha volta foram 32 dias de expedição. Com mais de 60 horas de material filmado e imagens de uma experiência profundamente complexa e ambivalente, ainda precisei traduzir as várias horas de filmagem do grupo de isolados e viajei de volta para Tabatinga para fazer isso com um dos korubos de recente contato que falava melhor o português. Depois de três anos e meio de trabalho, chegou a pós-produção e entendi que o melhor caminho era o de sempre, acumular praticamente todas as funções e finalizar o filme com meus parceiros.

Há momentos em que os índios encenam teatralizam, algo? Eduardo Coutinho tratava muito da na atitude, frente à câmera. Como os índios se comportam?

Os korubos que ali estão buscando seus familiares são de recente contato, alguns deles contactados em 2014 e 2015, a familiaridade com o aparato de registro não é a mesma que a nossa. As ações tampouco são conduzidas por essa estrutura narcísica tutelada pela imagem reprodutível, como acontece com os não-indígenas. Isso não quer dizer necessariamente que atitudes não possam mudar com a presença da câmera em diferentes situações, mas definitivamente não da mesma forma.

Qual a genuína emoção de ver em cena e de haver convivido com Bruno?

Aos poucos, fomos descobrindo que não tínhamos só o mesmo nome e idade, mas também éramos nascidos na mesma cidade e passamos a infância em bairros e escolas vizinhas. Bruno era obstinado, sagaz, teimoso, tinha boas histórias e gargalhadas, além da devoção ao indígena, daquelas que não falsificam a realidade. Dizia para ele que éramos meio franco-atiradores, eu estava investindo em nossa amizade e na continuidade de nosso projeto de fazermos toda uma iconografia dos isolados durante os próximos anos. Quando viajou com o Dom (coincidentemente um amigo meu de mais de 15 anos), uma das coisas que Bruno iria fazer era articular com os Marubos do Alto-Curuçá para que fizéssemos um segundo filme juntos, desta vez sobre uma missão de proteção e segurança na aldeia. Bruno já tinha assistido a um corte do A invenção do outro, que estava em finalização, e preparei todo um material de meus trabalhos anteriores para que pudesse apresentar para eles.

A expedição, por anos, gerou riscos. Você se sentiu em perigo? Qual foi teu grau de interferência?

Estávamos todos em perigo e o tempo todo, ninguém, que ali estivesse, não sabia disso. Na floresta a morte é, talvez, algo mais íntimo, dela se fala e frequenta de diversas formas. Seis colaboradores da Funai já haviam sido mortos em tentativas de contato anteriores com os korubos, o último por uma bordunada por trás enquanto filmava. Para além disso, haviam as outras ameaças da selva, como invasores, animais e acidentes. O medo é uma premissa de sobrevivência, não há outra forma de permanecer por lá muito tempo sem fazer uso dela. Em compensação, a chave mental é não deixar esse medo te paralisar. O jogo é esse.

Deve ter dado desespero mexer em edição e cortar o filme. Do que não abriu mão?

Não abri mão de incorporar essa morte como sujeito. Ela estava não somente em suspensão ou iminência, mas ali nos objetos daquela cultura, na rotina, nas narrativas, na nutrição, nos afetos. Todos os korubos têm trajetórias sangrentas e incorporadas intimamente ao eu de cada um. Em geral, para comer, tínhamos que matar o que se mexesse. Muito macaco, jacaré e até preguiça. Em alguns momentos todo mundo tinha que carregar o rango e cheguei a passar horas andando com um macaco barrigudo morto amarrado na cabeça enquanto filmava. Certa vez um ainda estava vivo e quase me mordeu nas costas. Normalmente essa realidade não é exatamente digna de “empatia” para muita gente, dar conta dela requer um deslocamento brutal desse eu, nem todo mundo tá disposto a assistir isso.

Há uma escola de cinema que mais tenha te influenciado?

Pergunta difícil, de escavação. Eduardo Coutinho foi uma referência importante, me lembro também de filmes como “Aboio”, de Marília Rocha, e “Terra deu, Terra come”, de Rodrigo Siqueira. Mas o que poderia dizer essencialmente é que, desde o início, me identifiquei com cineastas que faziam filmes praticamente sozinhos, com todo o custo da prática da liberdade. No Brasil, eu citaria o Cao Guimarães, e internacional, o belga Boris Lehman. Além dos primeiros filmes que me vem à cabeça, como Tarnation (de Jonathan Caouette) e Le filmeur (Alain Cavalier).

Como percebe o lugar do cinema e da arte?

Há algumas décadas, a arte vem tentando justificar a sua existência e necessidade através de aplicações pretensiosamente humanistas e se consolidando como mais uma ferramenta num mundo de ferramentas. Ela “nos torna melhores”, educa, a arte-terapia, arte-utensílio. Já não há chance de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade para além da necessidade. O importante se tornou o que ela faz, e não o que desfaz. Para Agustina Bessa-Luís, a Arte deveria ser “…algo mais. É o próprio alento humano para lá da morte de todas as quimeras, da fadiga de todas as perguntas sem solução.”

Como o cinema se integra com política?

Existe de fato uma política na poesia do cinema que não se confunde com essa política ordinária, é muito mais rarefeita, profunda, e sobretudo crítica da própria política enquanto forma limitada de ver e elaborar a vida. À parte dos hiatos, o cinema brasileiro se consolidou nas últimas décadas como uma arte estatal, e o que chamamos de cinema independente é intrinsecamente dependente de forças e burocracias dos governos. O cinema-instrumento se torna ponto de partida e os filmes são concebidos e formalizados a partir da estrutura moral desses Estados, acarretando em consequências políticas e estéticas em comum entre as obras. Um dos fatos evidentes dessa uniformidade é a enorme hegemonia do cinema de “Identidade e oposição”, reproduzindo na arte os limites de compreensão da vida política. Essa identidade é o maior recurso ao “Uno”. Os países ocidentais, por razões históricas, sempre deram o privilégio à necessidade de buscar essa unidade, de um lado o Uno e do outro o que não pertence a esse Uno. Já a América Latina tem uma trajetória radicalmente distinta da mais profunda miscigenação, e é justamente por essa mistura incessante e múltipla de uma variedade em movimento que nunca poderemos ser esse um.

O que nos define, então? E onde estamos?

Somos o “entre”. E quando enxergamos Unos monolíticos, petrificados em suas identidades e ainda, relacionados pela via única da oposição, acabamos por importar diagnóstico e formas de como devemos refletir os nossos próprios objetos da cultura, isso não é pouca coisa. O ciclo se fecha quando justificamos que o cinema brasileiro “vai bem” ao citar a mesma aceitação internacional. Por fim, jamais podemos negligenciar no resultado dos filmes de hoje (e em nada no mundo atual) a força do sistema narcísico de recompensas proveniente do pertencimento ao grupo e amplificado pelas redes sociais, são poucas as obras que conseguem sobreviver a essas injeções de dopamina. Sobra como alento o fato de que, com uma provável e renovada ajuda do Estado para os próximos anos, há boas chances de se aumentar a fatia do audiovisual brasileiro no mercado global da ética.

55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Cine Brasília (EQS 106/107). Hoje, às 20h30, na mostra competitiva (com exibições ainda em Planaltina e Samambaia), com exibições do longa A invenção do outro (SP/AM), de Bruno Jorge, e dos curtas Um tempo para mim (RS), de Paola Mallmann, e Lugar de Ladson (SP), de Rogério Borges. Ingressos, R$ 20 e R$ 10 (meia).

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  • Cena do filme A invenção do outro:a tragédia dos índios 
na Amazônia
    Cena do filme A invenção do outro:a tragédia dos índios na Amazônia Foto: De Bubuia Cine/Divulgação
  • O indigenista Bruno Pereira, no longa A invenção do outro
    O indigenista Bruno Pereira, no longa A invenção do outro Foto: De Bubuia Cine/Divulgação
  • O diretor do longa-metragem Bruno Jorge
    O diretor do longa-metragem Bruno Jorge Foto: Divulgação
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