crítica

Leia crítica de "Mato seco em chamas": Um construtivo desmantelamento

Mato seco em chamas reafirma a força do povo nas eleições e do cinema da Ceilândia, além de, mesmo com as sucateadas pontuações high-tech, desviar de pechas como a de ser visto como um "Bacurau do Cerrado"

Ricardo Daehn
postado em 16/11/2022 06:00
 (crédito: Vitrine Filmes/Divulgação)
(crédito: Vitrine Filmes/Divulgação)

Acalentado por anos, o mais novo projeto do ceilandense Adirley Queirós (em codireção com Joana Pimenta), Mato seco em chamas regurgita o incômodo do momento: a latência do embate entre brasileiros, o ameaçador número 17 (à época das filmagens) para ideais de união e questões de interveniência no preço de combustíveis. Curiosa, nisso, é a proposta de uma aguerrida candidata à deputada distrital (Andreia Vieira), no filme: ressocializar compatriotas.

Ainda que pesem muito opções da montadora Cristina Amaral (colaboradora de longa data do falecido Carlos Reichenbach, com quem o filme dialoga) de estender o distópico longa, Mato seco em chamas reafirma a força do povo nas eleições (com a modelação do Partido Povo Preso) e do cinema da Ceilândia (que canta aldeias como Santo Antônio, Samambaia e Águas Lindas), além de, mesmo com as sucateadas pontuações high-tech (típicas do cinema de Adirley), desviar de pechas como a de ser visto como um "Bacurau do Cerrado".

Muitos revólveres estão nas mãos dos personagens — afinal, o Brasil está armado. A trama é constituída da reaproximação das irmãs Chitara (Joana Darc) e Léa (Léa Alves), filhas de um pai "raparigueiro", e que se tornam detentoras de petróleo, numa rede sem atravessadores que abala o status quo. Importante ressaltar que ficção e documentário estão sobrepostos na linguagem.

Numa região em estado de choque, com direito a toque de recolher e à desfaçatez em que militares preveem saudações (como continência "para o céu"), "A voz quem dá é Chitara", como demarca uma das personagens também estruturada na rede humana convulsionada, com potencial de fogo. Em contraponto ao contingente verde-amarelo (de brancos), numa pontuação documental, há, no filme de Adirley e Joana Pimenta, um corajoso grupo feminista que tem intimidade com maquinário pesado e é perito em subversões.

Adensando o universo de revide à opressão (como visto em Branco sai, preto fica e Era uma vez, Brasília), Mato seco em chamas registra o desmantelamento do poder, com o desaparelhamento da polícia, por exemplo. Os focos de fogo do filme (em que ecoam reflexões sobre criminalidade) estão no endurecido olhar de Chitara (Joana Darc, forte candidata ao troféu Candango de melhor atriz) e o modo pelo qual o povo (da Ceilândia) está incutido no filme. Na vida das guerreiras do longa, há espetinho de carne, motociata (de genuíno alcance popular) e ousadas músicas de Muleka 100 Calcinha, Odair José e DJ Guuga. Com pouco humor no roteiro, as cenas em que Léa se gaba das conquistas carnais se tornam um bálsamo. No "grito de amor e de fé" defendido pela fita (o sucesso de Roberto Carlos, sim, está referendado no longa) pesa o climão defendido pelo rap do Realidade Cruel: "Para a nossa vitória ninguém bate palma". Será? 

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