A pandemia, a realidade brasileira e uma vontade de refletir sobre o país e sobre as relações sociais e íntimas fecundaram os livros vencedores do Prêmio Candango de Literatura. O mineiro Marcílio Godoi ganhou o prêmio de melhor romance com Etelvina e Alexei Bueno, do Rio de Janeiro, levou na categoria poesia com O sono dos humildes. O Prêmio Brasília, destinado a um autor local, ficou com Alexandre Pilati por Tangente do cobre, e o de contos, com João Anzanello Carrascosa.
Professor do curso de Letras da Universidade de Brasília (UnB), Pilati começou a escrever Tangente do cobre em 2018, mas foi nos anos seguintes que o livro tomou corpo. Dividido em três partes — Conjuntura, Bate outra vez e Você volta pra ela —, o livro é fruto de uma insatisfação em relação à linguagem e de uma vontade de representar a realidade. "Claramente são poemas de um tempo de crise", avisa o autor. "O livro é construído nessas três partes relativamente diferentes entre si, mas entre elas existe uma tentativa de traduzir um pouco a beleza e a desgraça desse tempo que a gente vive."
Pilati trabalhou para encontrar recursos e técnicas diferentes dos que vinha usando até então. A ideia era encontrar uma voz lírica que desse conta de interpretar e representar a realidade. "É isso que move o poeta como artífice das palavras. A gente escreve para tentar entender e expressar as relações humanas", diz. Em uma das partes do livro, ele se debruça sobre perfis de celebridades e de anônimos e constrói uma galeria de personagens que refletem a sociedade. Nessa tentativa de se comunicar com o leitor, o poeta coloca um pouco de otimismo. "Sou esperançoso", garante. "Mas acredito que tem momentos da história que são mais tristes, como agora. E esse livro é um pouco fruto dessa tristeza, uma constatação de que a gente está vivendo um momento triste, mas de que o destino da humanidade não é esse."
Etelvina, da editora Patuá, também é a busca de uma voz literária, mas num sentido mais pessoal e particular. Uma história familiar guiou Marcílio Godoi pela composição desse romance em forma de diário no qual uma mulher, dona de casa e mãe, descobre um câncer e a proximidade da morte. Godoi queria, há muito tempo, escrever sobre a própria mãe, mas demorou a encontrar um tom literário e de interesse universal. "Eu tinha um sonho de escrever a biografia dela, só que esse desejo batia numa forma muito particular de memorialismo que não interessa muito à literatura, que é aquela coisa do álbum de família. Então busquei uma outra forma, mas levei muito tempo para fazer isso", conta o mineiro.
Foram 20 anos de buscas para encontrar a Etelvina do livro, uma mulher nascida no interior, criada na roça, mãe de 14 filhos, muito religiosa e igualmente apagada da dinâmica social, um destino comum às mulheres de uma sociedade patriarcal. Ao descobrir que vai morrer, a personagem começa a escrever o diário no qual conta a própria vida e reflete sobre sua trajetória. Da fazenda Amanhece, Etelvina vai morar em uma cidade pequena, depois em uma média para, ao fim, se mudar para uma metrópole. Consegue que os filhos estudem e, aos poucos, transforma o deus adorado em uma santidade feminina, da qual se sente mais próxima.
Para Godoi, o maior desafio foi encontrar a voz da personagem. "Minha formação vem muito da poesia, tenho uma ascendência literária muito lírica e procurei emprestar isso para o livro mas sem dar um tom muito piegas de quem está morrendo", explica o autor. "O livro alterna histórias divertidas com outras peculiares e outras muito dramáticas, mas sempre de um ponto de vista de uma mulher do Brasil de dentro, que viveu uma vida muito difícil com esse périplo do campo para a cidade, buscando a sobrevivência dos nove filhos, lutando de uma maneira um pouco épica."
O autor se surpreendeu com o Prêmio Candango e as coincidências de ganhar na categoria melhor romance em pleno Planalto Central. Amanhece, a fazenda do livro e da infância do escritor, fica na nascente do rio Paranaíba, na divisa de Minas Gerais com Goiás. "É pertinho de Brasília", diz. "E o livro conta também uma diáspora do candango Brasil afora."
Voz lírica
Ganhador do Prêmio Jabuti, do Prêmio ABL de Poesia e do Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), Alexei Bueno conta que ficou especialmente surpreso com o Candango de Literatura. O sono dos humildes, editado pela Patuá, concorreu com quase 700 livros de todos os países de língua portuguesa. "Já ganhei uns tantos prêmios, mas o Candango de Literatura me deixou especialmente feliz, ainda mais por ter sido na sua primeira edição. Creio que a importância é muito grande, para o autor e também para o editor, no caso o Eduardo Lacerda, da Patuá, que tem realizado um trabalho heroico com uma pequena editora, e que ganhou igualmente o Candango de romance", diz.
O sono dos humildes nasceu na esteira de Cerração (2019) e Decálogo indigno para os mortos (2020). "Esses três livros, no entanto, são muito diferentes", reforça o autor, que identifica na própria poesia elementos expressionistas e uma ligação consciente com o pós-simbolismo. O sono dos humildes é um livro de poemas com formas fixas, mas isso não quer dizer que Bueno se prenda a essa forma. "Mais ou menos metade do que escrevi foi em formas fixas, e metade em versos livres, que não são intercambiáveis, o poema que se faz numa forma não pode existir na outra", afirma.
Poesia lírica, o autor avisa, não tem tema. "Ou tem todos", arrisca. "Escrevi muitos livros de ensaios, aí o tema é claríssimo. O que posso dizer é que o 'humildes' do título não tem um sentido social, nem exclusivamente humano, tenta falar da pequenez de tudo perante o incognoscível, perante o mistério", explica o autor, que enxerga no livro uma referência à dificuldade ou à impossibilidade de cognição.
Etelvina: de Marcílio Godoi. Editora Patuá, 252 páginas. R$ 45
O sono dos humildes: de Alexei Bueno. Editora Patuá, 188 páginas. R$ 45
Tangente do cobre: de Alexandre Pilati. Laranja Original, 1112 páginas. R$ 30
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