Uma nova proposta de administração do Cine Brasília será concretizada, a partir desta quinta-feira (6/10), quando o cinema de 606 lugares, sediado na EQS 106/107, a partir das 20h, exibir o inédito e aguardado filme Noites alienígenas, grande vencedor da última edição do Festival de Gramado (confira entrevista com o diretor). Numa ponte junto a Secretaria de Cultura e Economia Criativa, a organização da sociedade civil Box Cultural terá por missão, até o próximo ano, coordenar 1.000 sessões previstas para atrair público de 300 mil pessoas. "A ideia é promover um conjunto de atividades e modernizações, para além do aprimoramento na manutenção do espaço. É um passo bastante maduro em relação à dinamização. As mudanças passam pela bilheteria digital, pelas vias pagamento digital (cartões e pix), pela modernização do sistema de projeção, com exibição de arquivos em múltiplos formatos, a partir do projetor já existente. Teremos a inclusão de uma rede de wi-fi de fibra ótica disponível, e aberta, para o público", explica a diretora geral da nova empreitada, Sara Rocha.
Atividades formativas e paralelas, segurança no acesso e recondicionamento da sala de exibição fizeram parte do plano de retomada da sala, com dois meses de antecedência. O amplo processo de retomada do cinema consumirá R$ 2 milhões. Parte sensível nas medidas diz respeito aos filmes a serem projetados. Pela percepção de Sara Rocha, o cinema moderno de arte atrai muito público. "Na fase inicial, de implementação, fizemos alguns testes, e foi muito surpreendente ver frequência de público. É preciso ter o entendimento que o cinema de arte contempla nicho muito importante, sobretudo, quando o circuito comercial de exibição tende à pasteurização", explica Sara Rocha.
Prevendo iniciativas futuras junto a entidades como a ABCV (Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo), o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia e a Universidade Brasília (UnB), fontes de prospecção para consolidação de público, profissionais envolvidos na reestruturação do Cine Brasília pensaram em medidas como exibição de curtas-metragens, com pagamento de cachês, e formatação de um comitê curador com critérios mais abrangentes e inclusivos, a fim de dar visibilidade para o cinema negro, vertentes de expressão LGBTQIA e valorização de realizadores com alguma deficiência.
Ocupando o cargo de diretor artístico do cinema, o professor e crítico Sérgio Moriconi parte das particularidades da vocação do Cine Brasília, diante de concorrentes como o Espaço Itaú de Cinema e o Cine Cultura Liberty Mall. "O Cine Brasília se encaixa entre ambos. Teremos uma parte da programação mais ou menos com o conceito do Liberty Mall, porque eles trazem filmes que não são os blockbusters, todos com grande qualidade. Tentaremos ainda avaliar quais são os filmes que não fazem parte do perfil do Itaú e que podemos trazer para o Cine Brasília —, lá eles encontrarão um outro público", pontua Moriconi. Ao enfatizar a parceria público-privada, ele conta da liberdade de programar singulares mostras de cinema.
A memória cinematográfica estará sempre de forma efetiva na programação, como demarca Moriconi. "Estamos, por exemplo, no centenário do Pier Paolo Pasolini, um dos maiores diretores italianos, e a pretendemos passar uma mostra dos filmes dele. Em 2023, vamos analisar o que pode ser feito, a partir de filmes clássicos que tenham importância e relevância na história do cinema", adianta o programador.
Passado o Biff (Festival Internacional de Cinema de Brasília), e com o vindouro LoboFest, além do consagrado Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o Cine Brasília acolherá um evento de cinema indígena. "Futuramente, as embaixadas, que sempre propõem coisas interessantes, voltarão a ser nossas parceiras. Vamos promover ainda sessões infantis regulares, o que vai ser muito interessante, porque foi sempre uma carência: Brasília agora vai ter sessões matutinas para as crianças, e além disso vamos continuar com sessões voltadas aos alunos da escola pública", conta o diretor artístico.
Novos caminhos
Declarado Patrimônio Mundial da Humanidade, em 1987, e com a chancela de ter sido projetado por Oscar Niemeyer, em funcionamento desde 1960, o Cine Brasília terá, a partir da nova fase, promessa de maior aproveitamento da área externa. "Queremos que o cinema seja referência, não só arquitetônica, mas que volte a ser referência para toda a população de Brasília. Há certas limitações estruturais, por causa do tombamento, mas vamos colocar um café mais completo. Há também a perspectiva de que, junto a mostras que somem e aprimorem os filmes, venhamos a contabilizar ganhos, eventos que venhamos a receber, e que eles deixem um legado, uma espécie de contrapartida para o Cine Brasília. Dessa forma, vamos amplificar a sinergia entre o Cine Brasília e os entes produtores de cultura da cidade", avalia Sara Rocha.
A exibição desta quinta-feira (6/10), do primeiro longa acreano Noites alienígenas, se desdobrará numa atividade, às 11h, de amanhã, no mesmo local. Tanto o cineasta Sérgio de Carvalho quanto o ator Jefferson Xavier farão parte de uma masterclass gratuita. Noites alienígenas trata dos percalços trágicos que cercam um trio de jovens de origem periférica. O filme tem estreia marcada para janeiro de 2023, o que torna a pré-estreia mais badalada. "É resultado da dinâmica da participação social na gestão direta da cultura e das políticas e equipamentos. Percebo uma aproximação com a fluidez, formato e o atendimento de demandas, visíveis, desde a nova formatação do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2017. Naquele modelo, houve ganhos para tramitações administrativas que eram onerosas e traziam burocracia", observa Sara Rocha.
"Diante de uma sala como a do Cine Brasília, enorme, e que é um cinema de bairro, numa estrutura que quase não existe mais nas cidades, você pensa na responsabilidade de fazer com que o cinema seja ocupado pelas pessoas nas cidades. Inclusive das cidades das várias regiões administrativas do DF. Melhora, o Cine Brasília também ter uma estação de metrô — o que facilita muito a chegada ao cinema de pessoas vindas de outras comunidades do DF", conclui Sérgio Moriconi.
Três perguntas Sérgio de Carvalho
Qual o papel da musicalidade no filme Noites alienígenas?
Sempre fui um entusiasta das culturas urbanas — do hip hop, do rap e do grafite. Todas as vertentes das culturas urbanas no Acre são muito fortes. A gente tem o movimento etnografite, com temas da floresta em artes como grafite e rap. Sempre me chamou muito a atenção e tive uma parceria com os meninos hip-hop de Rio Branco. Foi muito natural o encontro com rap para realização de muitas batalhas de MCs. Não sou de nenhuma vertente do hip-hop, mas sempre fiquei muito junto e percebi como o movimento estava acontecendo com muita força na periferia. Achei muito importante trazer essa moçada das expressões dos muros, com questões super importantes nos setores da política, da sociedade e mesmo da poética do cotidiano.
Conhecimentos milenares dão estofo para algumas situações do longa. Qual tua intimidade com o tema?
Junto com a naturalidade da relação do hip-hop, veio a questão indígena. Sempre estive muito próximo das culturas indígenas do Acre, tenho grandes amigos nas aldeias. Frequento, há mais de 20 anos, diversas comunidades indígenas, participei de rituais e tudo no filme derivou da fonte orgânica. Pesquisei muito a mitologia. Meu primeiro trabalho em audiovisual, um curta-metragem chamado Awara nane putane, contava do mito de surgimento da cultura yawanawa. Foi quando surgiu o símbolo da jiboia que faz parte dessa mitologia: a jiboia para alguns povos é a mais sagrada, trazendo toda a cultura espiritual. Na vida, também com buscas espirituais, houve convivência. Tive a série chamada Nokun Txai, que está na Amazon Prime e trata de populações indígenas do Acre diante da contemporaneidade. O assunto me desperta muito interesse e fascínio. Aprendo bastante os povos indígenas de maneira geral. Então foi muito natural quando surgiu essa temática dentro do longa Noites alienígenas. Trato de olhar a Amazônia da zona urbana, com povos indígenas dentro de um contexto de perda de território e de perda de identidade.
Com que pretensão você abraça dados e explora elementos sociais do país?
Há a questão da chegada da mudança das facções criminosas do crime organizado do Sudeste, e estamos falando do Comando Vermelho e do PCC (o Primeiro Comando da Capital), numa conjuntura recente. É algo de 10, 15 anos. Sempre teve criminalidade no estado do Acre, estado que tem a fronteira do tráfico e tem presente convívio com diversas violências. No Amazonas há questões de território, com a criminalidade. No presente, entretanto, há a mudança da rota do tráfico e há a invasão das facções criminosas. Tudo tomou proporção muito séria, grande e complexa. Se recrutou toda uma juventude e, nas disputas entre diferentes facções, muitos jovens morreram. Vivemos uma verdadeira tragédia social e ambiental. O tráfico se imbrica no crime organizado, na ação de garimpeiros, madeireiros. Vivemos uma tragédia socioambiental profunda. Ela atinge sobretudo os jovens negros e indígenas das periferias. Daí senti a urgência de falar da mortandade aliciada pelo tráfico, e da completa ausência do Estado.
Palavra de especialista
"Nas várias fases do Cine Brasília, houve momentos de descontinuidade. Mas, claro, houve eras ricas como a em que José Damata esteve à frente da programação, houve outro em que Bita Carneiro também programou o Cine Brasília com direcionamento interessante. Quando eu era apenas um jovem espectador, acho que o Marco Antônio Guimarães era o programador de grandes filmes. O Cine Brasília, de fato, acabou muito associado a festivais. Principalmente, claro, ao Festival de Brasília. Então a sala se tornou um templo do festival. Isso que mais marcou a história do cinema. É claro que, antes dos anos de 1960 e meados dos anos 70, o Cine Brasília funcionou como um cinema comercial normal. Ele detinha grandes lançamentos, junto a distribuidoras que existiam na época. Depois disso foi diminuindo até que o cinema teve momentos de descontinuidade em que ficou até mesmo fechado.