JLG não inventou o cinema, mas inventou uma forma muito particular de fazer cinema. Pai da nouvelle vague, uma onda francesa que começou com Acossado, em 1960, e nunca chegou a terminar de verdade, mostrou ao mundo que narrar uma história era muito mais do que pregava a tradição hollywoodiana clássica. Linearidade e estúdio não eram com ele. Ao longo das décadas, Jean-Luc Godard pode ter se atualizado ou se tornado anacrônico, como querem alguns críticos, mas seus filmes jamais deixaram de se ancorar na inovação e na experimentação. O pai do mais famoso dos movimentos franceses do século 20 morreu ontem. Aos 91 anos, o cineasta de origem franco-suíça recorreu ao suicídio assistido, mecanismo autorizado e protegido pela lei na Suíça, para encerrar a passagem pelo planeta.
A morte do cineasta foi confirmada à Agência France-Presse pelo porta-voz e conselheiro da família. "O senhor Godard recorreu à assistência legal na Suíça para uma partida voluntária em consequência a 'múltiplas patologias invalidantes', segundo um boletim médico", explicou Patrick Jeanneret. De acordo com a mulher de Godard, Anne-Marie Miéville, ele morreu em casa, na região de Rolle, às margens do Lago Léman, e esteve o tempo todo cercado por pessoas próximas. De acordo com uma fonte que conversou com o jornal Libération, JLG "não estava doente, ele estava simplesmente exausto".
Foi com uma câmera na mão, longos planos sequências, algum improviso, pouca narração e centenas de referências estéticas e históricas embutidas em cada detalhe que Godard deu início à Nouvelle Vague com Acossado, em 1960. O mundo do cinema ficou fascinado: na tela, Jean Seberg saltita pela avenida Champs Elysées vendendo seu "New York Herald Tribune" quando esbarra em um insolente Jean-Paul Belmondo. Na pele de um bandido que acaba de abater um policial e que pretende uma fuga para Roma, ele tem poucos dias para convencer a estudante americana a reatar uma suposta relação. Mas a história importa pouco nesse filme.
É a maneira como Godard organiza as imagens, como os atores se movimentam, como se compõem a estética do longa e seus diálogos que pegam o público de jeito. São imagens cruas, Paris filmada sem filtro, com um roteiro curtíssimo escrito por François Truffaut, parceiro de Nouvelle Vague, outro que ajudou a transformar o gentílico francês em adjetivo qualificativo de cinema. Sucesso de crítica e de público, o filme mudou a história da cinematografia mundial e abriu as portas para uma sequência de obras que elevariam Godard à categoria de gênio tão idolatrado quanto odiado.
Em seguida a Acossado viriam Uma mulher é uma mulher (1961), com um roteiro desconcertante sobre uma mulher que aceita engravidar do amigo do namorado porque este último não quer o filho, Viver a vida (1962), uma história de desilusão e prostituição, O desprezo (1963), no qual Brigitte Bardot vive uma esposa tiranizada, e o surreal Band à part (1964), com a ingênua Odile e sua dupla de pivetes que atravessam a Grande Galerie do Louvre em uma das cenas mais lindas da história do cinema.
De formação marxista, Godard não hesitava em plantar a política nos filmes, outra característica que levaria o movimento a ser encarado como divisor de águas. Com Masculino feminino (1966), ele assume sua marca política em uma sequência de 1h44 na qual Jean Pierre Léaud, o queridinho de Truffaut, e Chantal Goya discutem, em um café, a militância contra a guerra do Vietnã ao mesmo tempo em que embarcam em um diálogo de sedução mútua. Depois viriam Made in U.S.A (1966) e A chinesa (1967), produções nas quais o diretor expõe suas convicções sociais e políticas.
No final dos anos 1960, JLG criou o grupo Dziga Vertov, em homenagem ao cineasta russo. Ali, ele experimentou ao máximo a radicalização política em pleno Maio de 1968, movimento para o qual era uma espécie de ícone. Na década seguinte, o cineasta passaria um tempo dedicado à televisão e afastado do cinema para, nos anos 1980, retomar a película com os chamados filmes-ensaios, com longas como Sauve qui peut (la vie) (1969), Prénom Carmen (1983) e Je vous salue Marie (1985), censurado no Brasil. No final dos anos 1990, Godard deu início a uma série de produções intituladas História(s) do cinema, sua versão, em oito etapas, para a história do cinema. Como ele disse, em entrevista para a revista Les Inrockuptibles, fez "uma ecografia da história pela perspectiva do cinema".
Na década de 2000, o experimentalismo do franco-suíço toma dimensões extremas com produções como Filme socialismo (2010) e Elogio do amor (2001). É também em 2010 que ele recebe um Oscar honorário pelo conjunto da obra. Em 2014, apresenta Adeus à linguagem no Festival de Cannes. O filme que compete na seleção oficial, e, em 2018, O livro de imagem, dedicado ao mundo árabe, também concorre à Palma de Ouro. Em uma dessas ocasiões, em entrevista para a divulgação dos filmes, Godard evoca a possibilidade de suicídio, um tema pelo qual sempre demonstrou interesse. "Quando o senhor morrer, o mais tarde possível…", disse o repórter, em episódio citado no jornal Libération. "Não necessariamente o mais tarde possível", interrompeu JLG. "Se eu estiver muito doente, não tenho vontade alguma de ser arrastado em um carrinho de mão", explicou.
Em 2004, ao mesmo jornal, Godard confessou ter tentado se matar nos anos 1960 "para que prestassem atenção em mim". A entrevista era sobre o lançamento de Nossa música, no qual a personagem lê um trecho de O mito de Sísifo, de Albert Camus, que diz: "Existe apenas um problema filosófico realmente sério: o suicídio."
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