Livros

Lançamentos literários abordam diferentes perspectivas do 7 de setembro

Livros propõem olhar para o 7 de setembro a partir de perspectivas que vão além da visão tradicional e pacífica do evento

A imagem da independência declarada por um alegre e sorridente Dom Pedro, às margens do rio Ipiranga, pode encantar as crianças nos livros de história e nas narrativas míticas sobre como o Brasil se desgarrou de Portugal, mas há muito é alvo de críticas por parte de historiadores e pesquisadores. A comemoração dos 200 anos da data nacional hoje vem acompanhada de uma leva de livros que ajudam a jogar luz sobre novas maneiras de compreender o processo de transformação do Brasil em nação.

A crise das monarquias europeias e as guerras travadas no continente do outro lado do Atlântico são o ponto de partida para desenhar o mapa social e político do Brasil naquelas primeiras décadas do século 19 em Adeus, senhor Portugal — Crise do absolutismo e a Independência do Brasil, de Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira. “Não dá para entender a independência sem entender por que o absolutismo entrou em crise”, explica Cariello. “A Independência é resultado de uma crise que a antecede e surge da crise do absolutismo na Europa.”

Com a mudança da família real para o Brasil em 1808, as despesas do erário deram um salto imenso. Além de bancar uma guerra em solo europeu para evitar a entrada de Napoleão em terras lusas, era preciso acomodar uma corte, pagar os empregados que vieram com Dom João VI e instalar a realeza conforme o título. Uma das soluções para bancar as despesas foi aumentar os impostos. Só a guerra teria consumido 80% das finanças públicas. Em 1815, as investidas militares napoleônicas chegam ao fim, mas Dom João dá início a outra guerra, dessa vez para tomar Montevidéu. A primeira campanha cisplatina, em 1811, aumentou as despesas militares e, em 1820, a conta não fechava mais. “Daí eles começaram a pegar dinheiro do Banco do Brasil e aumentaram a circulação de moeda, então veio a inflação”, conta Cariello.

A crise tomou dimensões enormes com a perda do poder de compra e falta de pagamento de salários por parte da corte. Um caldeirão perfeito para o descontentamento que levou à separação de Portugal. “A independência ocorre em duas etapas: crise fiscal, que vira crise política”, explica o autor de Adeus, senhor Portugal, que vê nesse processo grande semelhança com várias situações políticas e econômicas instaladas no Brasil nas décadas seguintes. “Quase todas as grandes crises políticas que foram profundas o suficientes para se tornar institucionais tiveram origem fiscal”, repara, ao lembrar do desarranjo financeiro do estado na década de 1960, que desembocou no regime militar, e da hiperinflação dos anos 1980, que obrigou os generais a devolverem o poder aos civis. “E é também uma crise fiscal com Dilma (Rousseff) em 2016 que dá numa insatisfação popular. E é, de novo, o que a gente está vivendo no governo Bolsonaro a ponto de gerar um presidente que concorre à reeleição com grande chance de perder”, diz.

Independência com luta

Para a historiadora Cecília Helena de Salles Oliveira, professora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, é preciso se desgarrar das narrativas oficiais e investigar melhor o que significou e como se deu a separação de Portugal. Em Ideias em confronto — Embates pelo poder na Independência do Brasil (1808-1825), ela busca valorizar a dinâmica das lutas que precederam e desembocaram na criação da nação brasileira. “Tradicionalmente a visão da independência é a dinâmica da passividade e da continuidade”, explica. “A gente descobriu, através de pesquisa, que mais de 50 mil pessoas morreram nas guerras de independência. Naquele tempo, era um número muito grande. Pessoas se engajaram diretamente na luta armada, praticamente todo o território foi conflagrado. E adentrou para o período da regência”, conta.

O 7 de Setembro pode ser um marco, mas a criação de um estado nacional, defende a historiadora, começou muito antes, sobretudo com a deflagração de movimentos de norte a sul que questionavam e se revoltavam contra as práticas do império. “No caso do Brasil, a independência significa a configuração de um governo monárquico, constitucional, representativo da implementação de uma legislação liberal. Em nenhum lugar do mundo isso aconteceu sem grandes confrontos armados e aqui não foi diferente”, diz Cecília. Segundo ela, aprende-se uma memória em torno da independência que faz dela primeiro a um ato de vontade de Dom Pedro e, segundo, sinônimo de separação de Portugal como se houvesse continuidade entre o período colonial e o de construção nacional. Mas não foi bem assim.

Não havia consenso político em torno da separação e sim muita luta entre grupos políticos diferentes, expressão de transformações profundas na sociedade brasileira. “Mas esse passado da independência chega até nós geralmente por dois caminhos: um é o que transforma Dom Pedro e outros em herói e fica nisso, nessa transição pacífica. O outro caminho é do escracho, do pouco caso, da ideia de que a história do Brasil, perto das outras, é nada, porque aqui nada foi sério, nada foi feito de acordo com sei lá quais critérios, que nossa história sempre foi morna e sem grandes revoltas e manifestações”, lamenta a historiadora.

Para Cecília, esse tipo de narrativa procura desqualificar a sociedade brasileira para apontá-la como frágil em consequência de sua multiplicidade étnica e cultural. “E é o inverso, a sociedade brasileira está nas raízes da cultura indígena, da cultura africana e nesse mistura que faz com que sejamos específicos. É aí que a gente tem que buscar a nossa força”, diz Cecília, que acredita ser necessário reconstruir as bases políticas do país valorizando essa característica.

Construção de um mito

A história oficial, que ressalta sempre a característica pacífica do 7 de setembro, também é tema de O sequestro da Independência — Uma história da construção do mito do Sete de Setembro, de Lilia M. Schwarcz, Lúcia K. Stumpf e Carlos Lima Jr. A partir da iconografia sobre a Independência e a formação da nação brasileira, os autores convidam o leitor a embarcar na história não contada e a compreender como se dá a construção dos símbolos por meio das imagens. O ponto de partida é a clássica pintura de Pedro Américo, Independência ou morte, que, como lembram os autores, “encobriu (...) a realidade de um projeto muito conservador, que reagia ao fantasma do desmembramento das províncias, à desmontagem da escravidão e ao surgimento de líderes republicanos contrários à simples preservação e manutenção do status quo”.

O livro analisa dezenas de pinturas, gravuras, esculturas e outras obras produzidas ao longo dos anos cujo conteúdo tenha a ver com a Independência. O contexto no qual foram produzidas e o tipo de narrativa para a qual foram criadas as obras dão pistas sobre como os protagonistas e os personagens com poder de registro histórico queriam que o momento fosse estudado no futuro.

Um outro olhar

Publicado pela primeira vez em 2004 e agora revisado e reeditado, A outra independência — Pernambuco, 1817-1824, do historiador Evaldo Cabral de Mello, propõe olhar para o momento histórico a partir de uma perspectiva que englobe as revoltas ocorridas antes e depois de 1822 no estado nordestino. Pernambuco era uma das províncias mais taxadas pela coroa. Rica produtora de bens, a região também era visada como fonte de finanças por meio do pagamento de impostos. Movimentos como a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, em 1824, fizeram parte da dinâmica que levou à separação de Portugal e à posterior reconfiguração de forças. Para o historiador, é preciso estudar o antes e o depois da Independência na região para, de fato, compreendê-la.

Outras perspectivas

Professores do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), Bruno Leal e José Inaldo são os organizadores de Várias faces da independência, lançamento da Editora Contexto. O livro tem a intenção de problematizar o processo de independência a partir de suas dimensões política, econômica, social e cultural. “Discute a guerra de independência, a situação dos povos indígenas, a atuação dos povos pobres, libertos e escravizados no período. Um capítulo examina somente os usos políticos da independência pela ditadura militar. Vamos de norte a sul, pensando as particularidades locais desse complexo processo”, avisa Bruno Leal. Ele lembra que, em geral, o destaque da historiografia é para a participação das elites no processo de independência, mas o livro sugere romper com esse modelo ao incluir no debate a participação de outros grupos sociais e do processo de emancipação em diversas regiões do Brasil.

 

Saiba Mais

Arquivo pessoal - Cecília Helena de Salles Oliveira: a relevância das lutas da sociedade civil
Folhapress - O historiador e diplomata Evaldo Cabral de Mello: a independência passa por Pernambuco
Todavia - Embates pelo poder na Independência do Brasil (1808-1825) De Cecília Helena de Salles Oliveira
Todavia - A outra independência — Pernambuco, 1817-1824 De Evaldo Cabral de Mello.
Companhia das Letras - Ilustração do livro O sequestro da Independência — Uma história da construção do mito do Sete de Setembro
Editora Contexto - Várias faces da independência Organização: Bruno Leal e José Inaldo. Editora Contexto