Na passagem dos 100 anos do modernismo, o movimento que marcou a independência da arte brasileira continua a provocar polêmica. Para alimentar o debate, Yussef Campos organizou a coletânea Inda bebo no copo dos outros, com textos de Mario de Andrade sobre o modernismo, e Luiz Ruffato lança A revista Verde, de Cataguases — Contribuição à história do modernismo (ambos pela Editora Autêntica). Inda bebo no copo dos outros reúne ensaios esparsos de Mario de Andrade, em que discorre sobre os fundamentos da estética modernista brasileira e se autodefine como "um primitivo de uma nova era". Enquanto isso, Ruffato escreveu um ensaio para desmistificar de vez a versão fantasiosa de que a revista Verde, de Cataguases, foi um milagre histórico, por ter sido criada em uma cidade do interior de Minas Gerais. Ruffato argumenta que, naquele momento do Brasil, em um país totalmente rural e analfabeto, Cataguases era uma cidade industrial e com uma tradição de educação. Em entrevistas ao Correio, os dois autores ressaltam facetas do modernismo brasileiro sob novas perspectivas.
Entrevista//Yussef Campos
Qual a pertinência da edição desta coletânea?
Começou com a própria provocação do Mario de Andrade em texto na revista Klaxon: como poderíamos celebrar a independência de nossa literatura? Existem muitos trabalhos retrospectivos, contudo, eu estava interessado em retomar o que Mario projetava sobre isso. E, dentro deste contexto, o que tivessem em comum com a estética modernista. Na verdade, não existem textos inéditos, todos são conhecidos, mas alguns não eram publicados há muito tempo. São textos que ajudam a pensar o movimento modernista.
Como é que Mário de Andrade define o moderno?
É uma pergunta que ele se faz em texto que publica perto da morte precoce, 20 anos depois. O moderno é a tentativa de abandonar o formalismo, usar a linguagem coloquial e a liberdade de expressão. Escrevo brasileiro, sou primitivo de uma nova era, dizia Mario. O título Inda bebo no copo dos outros revela que embora o modernismo busque rupturas, ninguém está sozinho. Não escrevemos a partir do nada, nos apoiamos em outros movimentos ou autores para escrever. Ainda que ande sozinho, mesmo com o modernismo, ainda bebo do copo dos outros.
Nas décadas de 1960 e 1980, Oswald era valorizado como revolucionário e Mário como mais conservador. Qual a diferença entre Mário e Oswald de Andrade? Mário ou Oswald?
Há uma ruptura entre eles. Acho que não se pode resumir o modernismo a São Paulo e a Mário e Oswald de Andrade. Muitas vezes se esquece Anita Malfati e Tarsila Amaral. E também da condição polímata de Mario de Andrade, de futuro gestor do Departamento de cultura de São Paulo e de autor de anteprojeto Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, o Iphan. Oswald acabou criando uma sombra para Mario na década de 1960 e ele acaba circulando com menos impacto. A própria biografia do Oswald com Anita Malfati em um Brasil tão conservador e misógino acaba atraindo para ele atenções para além da obra. Mas o Mario tem sido retomado dentro e fora da academia o protagonismo. Na verdade, nunca deixou de ser valorizado. As nossas tendências maniqueístas acaba tirando a do Sergio Milliet, do Villa-Lobos, da Tarsila do Amaral e da Anita Mafalti. É preciso lembrar do movimento modernista no Rio de Janeiro ou da Revista Verde, de Cataguases, uma pequena cidade da zona da mata mineira, que teve protagonismo na história da independência de nossas letras.
Por Mario de Andrade se autodefine como moderno por ser primitivo de uma outra era?
Eu acho essa definição se alinha com a proposta antropofágica de Oswald de Andrade. Não é replicar os modelos europeus, mas devorá-los e construir uma nova era cultural, a partir de um ruptura antropofágica.
Como avalia as críticas e revisões que situam os modernistas como artistas filhos dos escravocratas que fecharam os olhos para a violência contra os negros e os índios e projetaram imagens caricaturais dessas duas etnias?
É inegável que a Semana de Arte Moderna teve um caráter elitista. Acho importante a releitura crítica, ainda que o modernismo quisesse trazer a linguagem popular para a literatura.
Entrevista//Luiz Ruffato
Como se explica que uma cidadezinha do interior de Minas Gerais tenha publicado uma revista tão importante para a história do movimento modernista brasileiro? Foi um milagre cultural ou existia um contexto que permitiu a emergência do movimento no interior de Minas?
Na verdade, esse ensaio é para desdizer isso, que era um fenômeno inexplicável. É uma coisa que se repete e ninguém nunca foi lá ver por que aconteceu. Não acredito em fenômeno inexplicável. O que ocorreu na revista Cataguases em 1927 está em um contexto histórico. Apresento vários fatores. Primeiro, é descabida a comparação que se faz entre Cataguases e as metrópoles brasileiras hoje. Naquela época, Belo Horizonte tinha 100 mil habitantes, e São Paulo, 500 mil. Hoje, Belo Horizonte tem 700 mil. É uma coisa equivocada e até uma burrice. Em segundo lugar, em um país totalmente rural e analfabeto, Cataguases era uma cidade industrial e com uma tradição de educação. Não era uma cidade perdida na roça. Depois, tem um lance de sorte, não havia nenhuma revista modernista circulando no Brasil. Houve a Klaxon, em São Paulo, e havia a revista Estética, no Rio de Janeiro. Mais para frente, teve a revista Sesta, no Rio de Janeiro.
Qual a relevância da revista Verde para o modernismo brasileiro? A que fase do modernismo corresponde a revista?
Ele está entre o momento da ruptura do modernismo de 1922, mas, ao mesmo tempo, compreende como o modernismo vai consolidando e atenuando alguns radicalismos. Não é uma revista que tem muito clara sua filiação. Ao mesmo tempo, aceita a colaboração de outros autores, que não são tão radicais. Está situada na passagem que vai desaguar na revolução de 1930, quando o modernismo passa a ser política de estado do governo de Getúlio Vargas.
Como se deu a interação dos mineiros de Cataguases com os intelectuais de São Paulo e qual a importância dessa interação para o movimento modernista?
Na verdade, o primeiro número da revista ainda é regional. As colaborações eram, basicamente, do grupo de Cataguases com o grupo de A revista, de Belo Horizonte. Com o primeiro número, eles entram em contato com Alcântara Machado, surpreso com uma revista feita por adolescentes, no interior de Minas. Alcântara Machado manda os contatos de Oswald de Andrade, de Mário de Andrade e de Sergio Buarque de Holanda, entre outros. Os moços de Cataguases pedem colaborações para eles. E essas pessoas encontram na Revista Verde um ótimo lugar para divulgar o legado do modernismo. A partir do segundo número, você encontra a colaboração de todos os nomes modernismo.
Quem eram os intelectuais mais importantes de Cataguases e qual a contribuição que eles deram ao modernismo e à literatura brasileira?
Eram jovens estudantes de Cataguases. Do núcleo duro da revista, três deles não moravam em Cataguases, Guilhermino César e Ascânio Lopes. Quem estava era Henrique Resende e Rosário Fusco. Estavam começando a ter contato com a literatura modernista, seja em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro. Rapidamente, se encantaram com o que estava sendo feito a partir da Semana de Arte Moderna. Acompanham muito de perto esses fatos e absorveram a atitude radical moderna. Só passam a ser modernistas, depois do contato com o pessoal de São Paulo.