Quando lançou Gil — Todas as letras, pela primeira vez, Carlos Rennó contava com um total de 80 comentários do compositor para as canções reunidas no livro. Uma segunda edição, lançada em 2003, viu esse número ampliado para 208. Agora, em uma revisão que veio para celebrar os 80 anos de Gilberto Gil, Rennó entrega uma nova edição com 350 comentários, além de todas as letras escritas pelo compositor desde o início da carreira, em 1962.
É uma atualização que também revela o quão prolífica é a produção do músico. Os comentários ajudam a conhecer um pouco mais do pensamento de Gil sobre a própria obra. "Essa é a grande novidade, o grande atrativo desse livro, o grande charme, os comentários que o Gil faz sobre as canções. Porque isso é muito raro. Eu, na verdade, nem sei da existência de outro caso similar a esse, de grande compositor de grande música popular com uma obra dessa na qual ele comenta a gênese de muitas de suas canções, desnudando seu próprio processo compositivo e iluminando a compreensão do público sobre a obra dele", diz Rennó.
Foram muitas horas de conversa e entrevista para compilar o conteúdo de Todas as letras, além de um trabalho de pesquisa exaustivo no qual o autor classifica as canções cronologicamente e por fases. "As canções têm explicações que vão além dos temas e assuntos, porque Gil não é um compositor comum, é um compositor que dialoga, reflete, com aspirações e reflexões que abrangem vários campos da vida cultural e social brasileira e mesmo do homem de nossa época. Conversar sobre as canções do Gil não é conversar só sobre as canções do Gil e sim sobre o que elas abarcam", explica Rennó. Os comentários editados para o livro tocam em questões comportamentais, religiosas, filosóficas, políticas e científicas que preocupam o compositor.
Os comentários compilados na reedição são resultado de mais de 100 horas de conversas, 28 delas realizadas em 2021. Todas as letras também vem acompanhado de uma série de estampas criadas especialmente para as canções pelo artista plástico baiano Alberto Pitta, muito amigo de Gil, ícone do carnaval de Salvador e autor da concepção artística do bloco Cortejo Afro. Gil completou 80 anos em 26 junho e, este mês, passa por Brasília com a turnê comemorativa acompanhado dos filhos.
Este ano também foi de comemorações para Caetano Veloso, que completou oito décadas no mês passado e ganhou três novos livros para celebrar a data. A antologia Vivo, muito vivo reúne 15 contos inspirados em canções do compositor e assinados por nomes como Jeferson Tenório, Giovana Madalosso e Arthur Dapieve. Outras palavras — Seis vezes Caetano é uma biografia escrita por Tom Cardoso a partir de entrevistas e escritos do próprio músico e Letras é uma compilação organizada pelo poeta Eucanaã Ferraz.
Tom Cardoso conta que decidiu escrever Outras palavras porque não havia uma biografia de Caetano Veloso disponível, embora o compositor tenha publicado a autobiografia Verdade tropical, em 1997. "É um personagem tão controverso, multifacetado, na praça há quase 60 anos, que vai render outros livros. Então, motivação (para escrever sobre ele) não falta", conta o autor. "Escolhi esse recorte porque era uma forma de homenagear o Paulo César de Araújo, que sofreu muita resistência quando não se permitia autobiografias não autorizadas. Foi uma luta solitária (dele) que rendeu frutos porque, depois do parecer do Supremo, qualquer biógrafo pode escrever um livro sobre uma figura pública."
Paulo César de Araújo assina a biografia Roberto Carlos em detalhes e enfrentou tentativa de censura do músico em processo que foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2015, tribunal decidiu que autores e pesquisadores têm liberdade para escrever autobiografias não autorizadas independentemente de autorização do biografado.
Cardoso divide o livro em classificações que destacam fases da vida e da carreira de Caetano. Estão lá O santo-amarense, O polêmico, O líder, O vanguardista, O amante e O político. Tudo que está no livro, de certa forma, é público e já foi dito pelo compositor em entrevistas, mas há um tom de ineditismo já que boa parte desse material está em arquivos físicos que nunca chegaram à internet. "Fiz algumas entrevistas com outras pessoas e achei entrevistas que não estavam na Biblioteca Nacional. Apesar de não falar com Caetano, entrevistei algumas pessoas próximas a ele. Algumas em off. Entrevistando as pessoas, descobri arquivos que não estavam nem digitalizados", conta o autor. Mesmo assim, o livro traz algumas revelações, como a origem da música Eclipse oculto, que Caetano teria feito para um amigo com o qual teria tido um caso. Abaixo, Tom Cardoso fala sobre o processo de construção da biografia.
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Entrevista: Tom Cardoso
Você diz que queria homenagear o escritor Paulo César de Araújo por conta das controvérsias sobre a questão das autobiografias não autorizadas. O próprio Caetano participou da campanha para que o Supremo Tribunal Federal não autorizasse esse tipo de publicação. Por que, na sua opinião, elas geram tanta resistência?
É uma reação que nunca entendi. Se fosse uma reação por parte de personagens muito suspeitos… Agora, estamos falando de Caetano, Chico, Milton, Roberto, são figuras acima de qualquer suspeita. Não vou achar uma ligação de Caetano com o PCC. Não entendia essa resistência. O próprio livro do Roberto é muito bem pesquisado e não traz nenhuma revelação que desabone a figura dele. São personagens controversos ao longo de sua vida pública, mas nada que os desabone. Não fazia sentido.
Por que dividir o livro em santo-amarense, polêmico, líder, vanguardista, amante e político? Que dimensões de Caetano encontramos em cada um?
Há uma ideia de que o Caetano se mete em polêmica para procurar uma exposição, mas derrubo um pouco esse mito porque muitas das polêmicas eram alimentadas pela imprensa. E a fase mais polêmica do Caetano foi a que ele menos vendeu discos. Existe essa ideia de que o Caetano quer estar sempre em evidência, mas nem sempre, quando esteve em evidência, ele se saiu bem. Ele percebeu isso ao longo do tempo e foi moderando. Ele sofreu muito na época das patrulhas ideológicas. A partir da década de 1980, temos um Caetano mais sereno, mais maduro. E o santo-amarense era porque, para entender Caetano, tem que entender Santo Amaro como cidade e a família Veloso, que era realmente uma família diferente. Santo Amaro tinha uma efervescência cultural que muita cidade média não tem. O núcleo familiar e o contexto são muito importantes para Caetano. E no Líder, explico que ele se sentia meio tabaréu, achava que não era bom músico, tinha uma indecisão se ia seguir na música e só criou essa confiança a partir da chegada ao Rio e a São Paulo, quando se depara com algumas figuras. Em pouco tempo, ele vai passar de tabaréu a líder do tropicalismo.
Apesar de as falas dele terem sido publicadas na época, elas são muito reveladoras e recuperam histórias que só mesmo quem estava vivo e lia os jornais na época poderia lembrar…
Muita gente falou "você não vai falar com Caetano?". Eu poderia tentar uma entrevista por e-mail, mas tem menos força que uma entrevista dada no calor da hora em 1962 ou 1974. Muitas entrevistas foram publicadas em jornais e revistas que não existem mais, então eu tinha na minha cabeça que eram depoimentos praticamente inéditos, não só para quem não estava vivo, mas para quem estava e esqueceu. Caetano sempre foi muito contundente nas entrevistas. Então, eu tinha certeza de que ia achar muita coisa boa e com certo ineditismo hoje.
Pode contar como recuperou a história do Eclipse oculto?
É uma das poucas revelações do livro, mas que não chega a ser porque essa história foi publicada. Um amigo me disse que essa música, ele fez para um tradutor amigo dele e era sobre uma transa que não deu certo. Ele deu uma entrevista para a revista A tarde dizendo que a música foi feita para ele. Acho que não tem nada demais dizer isso hoje porque ele sempre se considerou um ser não binário, usava batom, tamanco, não dizia que era bissexualidade, mas era um jeito não binário de ver as coisas.