ENTREVISTA/ JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

"Brasil foi sequestrado pelo ódio, mas se salvará", diz José Eduardo Agualusa

Para o escritor angolano, autor de obras como As mulheres do meu pai e Estação das chuvas, país vive uma espécie de fundamentalismo religioso, comparável ao fascismo, que deve ser combatido

Vicente Nunes - Correspondente em Portugal
postado em 27/09/2022 06:00 / atualizado em 29/09/2022 09:09
 (crédito:  Vicente Nunes/CB)
(crédito: Vicente Nunes/CB)

Lisboa — O escritor angolano José Eduardo Agualusa, 61 anos, é um espectador atento sobre o que se passa no Brasil. "É um país inspirador por sua diversidade social e cultural", diz. Neste momento, porém, o autor de obras como As mulheres de meu pai, Estação das chuvas e Barroco tropical, só tem olhos para as eleições presidenciais, que, no entender dele, têm a missão de retirar o país do caminho do retrocesso. "Creio que estamos à beira de resgatar o Brasil da alegria e da tolerância, que foi sequestrado pelo ódio, pela incompreensão, pelo rancor", afirma.

No entender dele, a percepção que se tem hoje é de que um fundamentalismo religioso tomou conta do Brasil, movimento semelhante ao que ocorre em alguns países africanos, como Moçambique, cenário de várias de suas obras. "Vemos, no Brasil, uma espécie de fundamentalismo cristão, muito semelhante ao fundamentalismo islâmico de Moçambique", afirma. "É importante que se diga isso em público, para que possa ser combatido", acrescenta. E dispara: "Esse fundamentalismo religioso também é uma espécie de fascismo".

Para o escritor, apesar do assanhamento dos militares, que mergulharam de cabeça na política, não há possibilidade de um golpe no país, como se cogita, por total falta de apoio internacional, em especial, dos Estados Unidos. Otimista, diz acreditar que o Brasil será salvo pela cultura, que, nos últimos anos, vem sendo atacada pelo governo. "Não tenho nenhuma dúvida de que a cultura salvará o Brasil, um país que tem uma coisa extraordinária. Apesar deste período, que, de alguma forma obscureceu o horizonte, não eliminou a capacidade de reação", assinala.

A Ilha de Moçambique sempre esteve no imaginário do escritor angolano José Eduardo Agualusa. A descoberta daquele lugar mágico se deu por meio da poesia de Rui Knopfli, Mia Couto, Nelson Saúte, Virgílio de Lemos e tantos outros. Os laços foram se estreitando através das fotografias do mesmo Rui Knopfli. A intimidade com a ilha era tamanha, que, quando ele desembarcou lá, pela primeira vez, foi como se tivesse chegado a um território que já era dele, meio sonhado, meio imaginado, como ressalta.

Os laços entre Agualusa e a Ilha de Moçambique foram selados de vez em 2018. A segunda filha, Kianda Ainur, nasceu lá, em um hospital público, cuja estrutura era bem precária. Não por acaso, esse período ocupa todo o espaço nas fotografias e nas poesias que o escritor fez quando estava à espera do rebento e que, agora, estão expostas no Espaço Talante, na LX Factory, que fica na região central da capital portuguesa. "Essas imagens são um tributo à ilha e ao que ela representa para mim: um lugar de encontro de culturas, de conciliação e de paz. Ilustram, portanto, uma história de amor", diz.

As fotos são todas em preto e branco, com exceção de uma, a que retrata a gravidez da mulher, Yara. "Fui captando as imagens enquanto esperava pela minha filha", conta o escritor. As imagens também fazem parte de um livro com poesias e encadernação especial. As capas da publicação são cobertas por capulanas, tecidos moçambicanos com forte tradição familiar. Agualusa lembra que as fotos foram colhidas em suas redes sociais pela editora do livro, Lúcia Bertazzo. "Um material muito especial, que merece ser visto", afirma ela.

A exposição Gramática do instante e do infinito, que vai até 23 de outubro, mereceu um depoimento do amigo Mia Couto, moçambicano de nascimento. "Ler a luz, ouvir as sombras. Não vejo. Leio estas fotografias. Leio-as como se fossem um livro, como se contassem uma historia. O meu encantamento e o mesmo que me assalta perante as narrativas literárias do Agualusa. Diz-se que uma imagem vale mil palavras. O inverso também e verdade: uma palavra pode dizer mais do que mil imagens. Neste caso, não sei se vejo, se escuto. Não sei de quem e a autoria do olhar: se ou que vejo ou se sou eu quem e contemplado. Entra a ilha dos escritores e o escritor de ilhas, Jose Eduardo Agualusa escreveu histórias com luzes e sombras. As paisagens e os rostos são a frente e o verso da mesma página".

Agualusa ressalta que sempre está com uma câmara nas mãos. E os registros que faz são fundamentais para que possa desenvolver suas histórias. Isso ficou evidente em As mulheres do meu pai, em que o autor conta a história de Laurentina, que tenta reconstruir a vida do pai músico. Boa parte do caminho percorrido pela personagem foi feito de carro pelo escritor. Fotografia e escrita estão tão interligadas, que uma complementa a outra, reconhece ele. O Espaço Talante, que abriga a exposição, fica dentro da livraria Ler devagar. A curadoria do centro cultural é do ator Antonio Grassi e da mulher dele, Ciça Castello.

Agualusa, que esteve recentemente no Piauí em férias — as, primeiras, segundo ele, que tirou na vida —, enfatiza que o Brasil tem um grande respeito no mundo. "Talvez seja o povo que goza de mais simpatia no planeta. E essa simpatia tem a ver com a cultura. Tem a ver com o fato de as pessoas, no mundo inteiro, se identificarem com a música brasileira, com o carnaval, com o candomblé e com toda a riquíssima tradição cultural largamente de matriz africana. Portanto, se o Brasil existe no mundo, existe por meio da cultura", destaca. A seguir, trechos da entrevista que o escritor concedeu ao Correio, durante a apresentação da exposição com fotos de sua autoria no charmoso Espaço Talante, na região central de Lisboa.

Entrevista: José Eduardo Agualusa 

O Brasil está às vésperas de uma eleição muito polarizada. Como o senhor vê o país hoje?

Estou otimista. Acho que o Brasil está, espero eu, à beira de resgatar o Brasil. O país foi sequestrado por uma espécie de antiBrasil, e é preciso, agora, resgatar o Brasil que eu amo, que, no fundo, é o Brasil que a maioria das pessoas no mundo amam, o Brasil da mestiçagem, do encontro, da tolerância, da amizade, da canção, da alegria. A percepção é de que esse Brasil, nos últimos quatro anos, desapareceu, submerso pelo ódio, pela incompreensão, pelo rancor. Espero que, agora, seja resgatado.

Na sua avaliação, onde foi que o Brasil se perdeu para chegar ao ponto em que está hoje?

Há muitas razões para explicar o que ocorreu, mas não tenho nenhuma dúvida que uma delas tem a ver com um fenômeno que nós temos, que é o fundamentalismo religioso. Isso não é exclusividade do Brasil, está acontecendo também, por exemplo, em Moçambique. No Brasil, vemos o fundamentalismo cristão, em Moçambique, o fundamentalismo islâmico, que, na verdade, são absolutamente idênticos. Esse fundamentalismo é, também, uma forma de fascismo.

Quais as consequências disso?

A partir do momento em que o Brasil se deixou sequestrar por esse fundamentalismo, começou essa guerra interna, de radicalização. Portanto, embora seja difícil de dizer isso em público no Brasil, tal é a força desse movimento fundamentalista, é preciso que seja dito e é preciso que esse fenômeno comece a ser combatido.

É possível reverter esse movimento?

Eu acredito que o Brasil tem salvação, porque acredito na força e no poder desse Brasil africano, desse Brasil que sempre é capaz de se reerguer, porque ganhou, ao longo dos séculos uma dinâmica própria e tem um otimismo incorrigível. Então, sim, acredito que é possível, mas é preciso que o Brasil consiga enfrentar os grandes problemas que tem hoje, e passa muito pelo risco da existência desse fundamentalismo religioso.

Fala-se muito da possibilidade de um golpe no Brasil. O senhor acredita que o país pode retornar a tempos sombrios como os de uma ditadura?

Não acredito, porque a possibilidade de um golpe não tem sustentação internacional. Eu imagino que os Estados Unidos, que, de uma forma ou de outra, apadrinharam ao longo de décadas muitos golpes no continente americano, não estão nada interessados em que isso aconteça agora. Essa posição deve ter sido transmitida de forma veemente ao atual governo brasileiro. Então, não acredito que haja condições para um golpe militar no Brasil de agora.

A cultura vem sendo atacada de todas as formas no Brasil por ser um ponto de resistência contra retrocessos e movimentos autoritários. Como o senhor avalia isso? A cultura vai salvar o Brasil?

Não tenho nenhuma dúvida de que a cultura salvará o Brasil, um país que tem uma coisa extraordinária. Apesar deste período, que, de alguma forma obscureceu o horizonte, não eliminou a capacidade de reação. O Brasil goza de uma grande simpatia no mundo. Talvez seja o povo que goza de mais simpatia no planeta. E essa simpatia tem a ver com a cultura. Tem a ver com o fato de as pessoas, no mundo inteiro, se identificarem com a música brasileira, o carnaval, com o candomblé e com toda a riquíssima tradição cultural largamente de matriz africana. Portanto, se o Brasil existe no mundo, existe por meio da cultura.

O senhor esteve de férias recentemente no Brasil, no Piauí. O país lhe inspira?

Sim, muito. Por isso eu digo que, apesar de tudo o que aconteceu, de o Brasil ter regredido em termos sociais e em termos culturais, inclusive, ainda mantém uma força e uma pujança. Não perdeu, está lá, continua, mantém essa alegria e, sobretudo, essa capacidade de receber o outro, que é importante para o turismo.

Registros de uma história de amor

 25/09/2022. Crédito: Vicente Nunes/CB/D.A Press. Portugal. Escritor angolano José Eduardo Agualusa.
25/09/2022. Crédito: Vicente Nunes/CB/D.A Press. Portugal. Escritor angolano José Eduardo Agualusa. (foto: Vicente Nunes/CB)


Lisboa — A Ilha de Moçambique sempre esteve no imaginário do escritor angolano José Eduardo Agualusa, 61 anos. A descoberta daquele lugar mágico se deu por meio da poesia de Rui Knopfli, Mia Couto, Nelson Saúte, Virgílio de Lemos e tantos outros. Os laços foram se estreitando através das fotografias do mesmo Rui Knopfli. A intimidade com a ilha era tamanha, que, quando ele desembarcou lá, pela primeira vez, foi como se tivesse chegado a um território que já era dele, meio sonhado, meio imaginado, como ressalta.

Os laços entre Agualusa e a Ilha de Moçambique foram selados de vez em 2018. A segunda filha, Kianda Ainur, nasceu lá, em um hospital público, cuja estrutura era bem precária. Não por acaso, esse período ocupa todo o espaço nas fotografias e nas poesias que o escritor fez quando estava à espera do rebento e que, agora, estão expostas no Espaço Talante, na LX Factory, que fica na região central da capital portuguesa. “Essas imagens são um tributo à Ilha e ao que ela representa para mim: um lugar de encontro de culturas, de conciliação e de paz. Ilustram, portanto, uma história de amor”, diz.

As fotos são todas em preto e branco — apenas uma é colorida —, e há um foco de luz especial na que retrata a gravidez da mulher, Yara. “Fui captando as imagens enquanto esperava pela minha filha”, conta o escritor. As imagens também fazem parte de um livro com poesias e encadernação especial. As capas da publicação são cobertas por capulanas, tecidos moçambicanos com forte tradição familiar. Agualusa lembra que as fotos foram colhidas em suas redes sociais pela editora do livro, Lúcia Bertazzo. “Um material muito especial, que merece ser visto”, afirma ela.

A exposição “Gramática do instante e do infinito”, que vai até 23 de outubro, mereceu um depoimento do amigo Mia Couto, moçambicano de nascimento. “Ler a luz, ouvir as sombras. Não vejo. Leio estas fotografias. Leio-as como se fossem um livro, como se contassem uma historia. O meu encantamento e o mesmo que me assalta perante as narrativas literárias do Agualusa. Diz-se que uma imagem vale mil palavras. O inverso também e verdade: uma palavra pode dizer mais do que mil imagens. Neste caso, nao sei se vejo, se escuto. Nao sei de quem e a autoria do olhar: se ou que vejo ou se sou eu quem e contemplado. Entra a ilha dos escritores e o escritor de ilhas, Jose Eduardo Agualusa escreveu historias com luzes e sombras. As paisagens e os rostos sao a frente e o verso da mesma pagina”.

Agualusa ressalta que sempre está com uma câmara nas mãos. E os registros que faz são fundamentais para que possa desenvolver suas histórias. Isso ficou evidente em “As mulheres do meu pai”, em que o autor conta a história de Laurentina, que tenta reconstruir a vida do pai músico. Boa parte do caminho percorrido pela personagem foi feito de carro pelo escritor. Fotografia e escrita estão tão interligadas, que uma complementa a outra, reconhece ele. O Espaço Talante, que abriga a exposição, fica dentro da livraria Ler devagar. A curadoria do centro cultural é do ator Antonio Grassi e da mulher dele, Ciça Castello.


 

 

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