A eleição presidencial de 2018, vencida pelo presidente Jair Bolsonaro, representou o marco de uma nova era da política no Brasil, marcada por uma escalada inédita de disseminação de notícias falsas, proporcionada pelas novas tecnologias da comunicação. O fenômeno surpreendeu os jornalistas, os analistas e a classe política. Os magos do marketing político cederam espaço para os operadores de algorritmos, que propagam a mentira com uma velocidade vertigionosa.
Patrícia Campos Mello, repórter do UOL, fez uma série de reportagens reveladoras do arsenal de notícias falsas que interferiram ou podem ter interferido no processo eleitoral. A série foi transformada no livro A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital (Ed. Cia das Letras), que se tornou em uma referência no debate sobre o tema.
Na reta final das eleições de 2022, dando continuidade ao projeto Diálogos Contemporâneos, Patrícia Campos Mello fala nesta segunda-feira (26/9), às 19h, no Museu da República, sobre outro tema urgente: A comunicação no Brasil: a mentira como ferramenta de desinformação. Para ela, o cenário de 2018 é muito diferente do que vivemos nas eleições de 2022. Antes, não havia legislação específica para a propagação de notícias falsas, a consciência dos eleitores sobre o perigo das fake news, a vigilância do Judiciário ou a investigação da imprensa.
Mas ela alerta que a fake news propagada pelo presidente Jair Bolsonaro, colocando dúvida sobre a lisura das urnas eletrônicas, merece toda atenção para que não se repita o roteiro anunciado da invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, incitada por Donald Trump. E, nesta entrevista ao Correio, Patrícia fala sobre a escalada da mentira na era da internet, os ataques à imprensa, os avanços e os desafios a serem enfrentados no combate às fake news e na defesa da democracia.
Entrevista/Patrícia Campos Mello
Qual foi a transformação de escala da mentira na política com a internet e as novas tecnologias da informação?
A mentira, obviamente, sempre existiu, mas com a internet e as redes sociais assumiu um volume avassalador. Existe o lema de que a mentira viaja mais rápido do que a verdade. É absolutamente verdadeiro quando se trata da internet. O que move os algoritmos são os engajamentos. O que leva mais engajamento ao algoritmo são mensagens de ódio, raiva e revolta. Normalmente, quando isso envolve a mentira, viaja muito mais rápido do que uma informação checada do jornalismo profissional. É uma competição desleal entre a mentira e a verdade.
Quais as consequências da disseminação de notícias falsas no processo político?
Quando no processo político existem informações desencontradas, elas ofuscam as informações verdadeiras. Não existe a possibilidade de checar a produção maçiça de mentiras. Então, essa confusão acaba censurando a informação real.
Por que a imprensa passou a ser um alvo de ataques tão intensos?
Porque se a gente pensar, o sonho de qualquer político é se comunicar diretamente com os apoiadores, sem nenhuma mediação crítica. Se dependesse deles, sumiam com os jornalistas, pois eles checam e investigam as notícias. Todos os regimes de populismo digital, de Victor Oban, na Turquia, a Donald Trump, nos Estados Unidos, precisam retirar a credibilidade da imprensa para impor as suas narrativas.
Em 2018, você fez uma série de reportagens que levantaram fatos e dados que podem ter inferferido no resultado das eleições. Você acha que o material pesquisado recebeu o tratamento adequado por parte da Justiça ou a leniência favoreceu a impunidade em relação à disseminação de fake news?
Acho que existem dois fatores. Em 2018, não existia legislação sobre isso. Isso só em 2019, a sociedade e o judiciário não estavam preparados para essa nova situação. Só depois da matéria foi elaborada uma legislação. Era um momento muito sensível, do ponto de vista político, não fizeram busca e apreensão, não ouviram ninguém. Os casos de crimes virtuais precisam ser investigados logo, só existe obrigação de guardar informações por seis meses. Mais tarde, é difícil você conseguir fazer uma investigação.
Qual o cenário que temos hoje? Existem pesquisas mostrando o alcance da propagação de notícias falsas nas decisões do eleitor no Brasil?
É algo que seria preciso quantificar, se uma notícia falsa cristaliza ou se sedimenta o voto. Agora, certamente, mobiliza o eleitor mais radical. Agora, se conseguir virar o voto, é algo que ainda não foi quantificado.
A partir de suas reportagens investigativas e de sua observação, o que mudou no cenário político da informação e da desinformação de 2018 a 2022, da eleição passada e da que estamos vivendo agora?
Hoje, a gente tem uma legislação. Além disso, existe uma tentativa de combater, as plataformas foram cobradas e começaram a se preocupar com o uso indevido da marca. A população está mais conscientizada de que existe fake news. Agora, a diferença é que temos governantes que propagam a fake news de colocar a dúvida sobre as urnas eletrônicas. Ao mesmo tempo em que a população se conscientizou, temos uma campanha para atingir o coração da democracia.
Como você percebe a tentativa de conter as fake news com multas pelo TSE? Multas de R$ 3 mil a R$ 5 mil para um partido que conta com verbas milionárias do Fundão Eleitoral para pagar são eficazes para combater as fraudes?
Acho que o fato de existir uma legislação é muito bom. O TSE tem de equilibrar a função de vigilância, mas não pode interferir excessivamente no procesos eleitoral. É uma situação delicada.
Você acha que existe uma resistência da mídia, ou de parte da mídia, em chamar mentira de mentira? Não existem alguns casos em que a mentira é tratada como "declaração polêmica"?
Sim, mas acho que a gente está melhorando, estamos aprendendo a noticiar uma declaração falsa, a contextualizar muito e a chamar de mentira de mentira. Estamos melhorando, mas falta muito.
Os jornalistas e o jornalismo são regulados por leis que responsabilizam os autores pelo que veiculam. As redes sociais permanecem uma terra sem lei ou quase sem lei. O que fazer para regular o espaço virtual e conter a disseminação de notícias falsas?
Acho que como jornalista tem uma legislação. Nao existe ainda isso nas redes sociais. Nas redes sociais existe um equilíbrio muito delicado entre fazer a regulação e permanecer uma terra sem lei. O internauta tem obrigações e deveres, não só direitos. Tem de ser responsabilizado. Na Europa, há um debate muito intenso sobre a necessidade de transparência do algoritmo ou de proibir a apologia do ódio. Mas é preciso muito cuidado para não policiar as opiniões do internauta. Esse é um tema muito complexo.
Com o acirramento da disputa na reta final das eleições o que esperar? É preciso ficar atento a que do ponto de vista da desinformação política?
Como tem um governante dizendo que não confia no sistema eleitoral, é preciso muita atenção. O que pode acontecer é ele incitar um movimento semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos, que culminou com a invasão do Capitólio. A preocupação é que as redes sociais, o TSE, o Judicário e a sociedade civil estejam preparados para evitar que isso aconteça.
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