Tão logo chamou a atenção do mundo, com o longa vencedor do Oscar, Corra!, o autor do roteiro daquele filme, Jordan Peele, obteve a comparação imediata com Quentin Tarantino. Ainda que reafirme a fonte de inspiração no mestre Alfred Hitchcock, Peele até faz por onde sustentar o comparativo com a nova ficção científica Não! Não olhe! que chega aos cinemas nesta quinta-feira (25/8). A premissa do filme que reencaminha bases do faroeste — traz a forte participação de atores negros e reconfigura papéis a eles reservados, num andar ao estilo de Os oito odiados (assinado por Tarantino). Mas há raízes diferenciadas na trama que mostra os irmãos OJ Haywood (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) na tentativa de perpetuar a fama da família deles — os Haywood, que estão fortemente ligados ao desenvolvimento de um rancho no Vale de Santa Clarita (Califórnia).
Além de treinar cavalos, há estrita ligação de OJ e Emerald no ramo da rica indústria de Hollywood. Vizinho ao rancho em que vivem, um decadente parque temático é administrado por Ricky Jupe (Steven Yeun), oportunista ex-ator de tevê traumatizado por um episódio que — narrado com a a grandeza de um mestre da tela como Stanley Kubrick — engrandece o cinema de Peele. Se o parque temático remete à decadência de A última sessão de cinema (1971), Jordan Peele traz no embrião criativo o cinema de reconquista, alardeado pelo astro Sidney Poitier, fundamental ao chamado cinema negro. Não por acaso, um poster do faroeste Um por Deus, outro pelo diabo (1972), estreia na direção de Poitier, estampa uma das cenas. No filme setentista havia interessados em reacender o modelo escravagista.
Mesmo diretor de Nós (2019), Peele se arvora em remeter o novo filme a Sinais (de M. Night Shyamalan) e a duas produções de Steven Spielberg: Contatos imediatos do terceiro grau (do qual aproveita a imersão sonora) e ET (na icônica cena do toque de dedos). Sem insistir na tecla de conteúdos e choques sociais, Peele deixa que as forças da natureza ajam no novo filme. Junto com uma teoria da conspiração, o aparecimento de objeto voador não identificado traz uma guinada no roteiro do filme. Entram em cena dois personagens capacitados a, com uso de tecnologia, registrar episódios inexplicáveis: o entusiasmado Angel (Brandon Perea) e um cineasta chamado Antlers (Michael Wincott). Depois de uma frustrada tentativa de integrar uma equipe de cinema, os irmãos protagonistas investirão no desvendar de UAPs (Fenômenos aéreos não identificados).
Um elemento é evidente em Não! Não olhe! e diz respeito à coleta e eternização de imagens. Para além do visual que, à luz do dia, crava a existência de uma mansão que lembra a de Terror em Amityville (1982), o filme examina a importância do tataravô do cinema — o zoopraxiscópio, criação no século 19 do fotógrafo britânico Eadweard Muybridge. O por quê da falta de notoriedade de um negro que, indiretamente, participou daquele invento, é parte da discussão de Não! Não olhe!. Dentro do foco central do longa, em que cavalos e um macaco têm forte importância, os personagens, acostumados a domar e amestrar animais, topam com o indomável. O inesperado desponta com o nítido surgimento de um disco voador, bem naquele esquema batido de aventura sci-fi.
A instabilidade para a isolada região californiana terá direito à abrupta queda de energia e à cômica intromissão de sensacionalismo relacionado aos fatos que cercam o filme capaz de adotar ramificação de tema assemelhada à do experimentalismo do ousado diretor Gus van Sant (dos áridos Gerry e Garotos de programa). A perda do controle desperta uma teoria que lembra a percepção de que animais afastados do habitat natural tendem a retornar ao ponto de origem. Numa escolha arriscada, a equipe da designer de produção Ruth de Jong aposta num visual questionável para o Ovini, num misto de plasma e panqueca voadora, e que acopla em si aparatos de uma câmera fotográfica.
Discutindo demarcação de território e captando imagens aterradoras de uma zona de completo caos para os humanos, o longa de Jordan Peele convence. Mas o roteiro (do diretor) fica atrapalhado, ao desprestigiar a elaborada e envolvente trama que cerca o passado de Ricky Jupe (Steven Yeun), testemunha de uma extremada atrocidade que o traumatiza. Se perde, de certo modo, o cineasta que discutiu sadismo e construção de identidade, em Nós, e apelou para um thriller de tirar o norte, em Corra!.