Uma flor no cabelo, uma boca pintada, uma saia rodada e a gargalhada solta. Assim é Ionete da Silveira Gama, que o Brasil e o mundo conhecem como Dona Onete, a diva do carimbó chamegado. Aos 83 anos, ela coloca fogo no salão com suas músicas dançantes e salientes. Antes da pandemia, a cantora e compositora paraense cumpria uma extensa agenda de shows em países da Europa, da Ásia e da Oceania, levando a musicalidade amazônica a um público diverso, mas predominantemente jovem. As letras falam de paixão e sedução, “propostas indecentes” para “morenos morenados”, o amor livre entre iguais, o lesbigay.
Em Brasília, Dona Onete já recebeu a Ordem do Mérito Cultural, foi musa do Virgens da Asa Norte e, na última semana de julho, uma das atrações do Festival Latinidades, ao lado de Lia de Itamaracá e MC Carol, entre outras mulheres que são expoentes negras na música. Com mais de 300 composições na bagagem, Dona Onete entra agora em estúdio para gravar o seu quarto disco, depois do sucesso de Jamburana, No meio do pitiú e Banzeiro, obrigatórias nas festas alternativas da capital federal. Em entrevista exclusiva ao Correio Braziliense, durante sua breve passagem pela cidade, Dona Onete falou sobre a carreira, os sonhos realizados e também os desafios para as mulheres de ontem e de hoje.
Entrevista - Dona Onete
Como estão os preparativos para o novo disco?
Tem 30 músicas, ainda estou fazendo mais (risos), e eu não sei o que vai acontecer. Vai ter briga, muita briga, porque uns querem uma coisa, outros querem outra, e eu quero aquilo que estou seguindo, né? Mas a gente vai fazer tudo para que o Pará volte novamente com um CD maravilhoso, que o povo dance, porque eu quero dançante, muito dançante. Eu vou falar de uma festa de interior no Pará.
Como é festa do interior?
A festa do interior é uma bagaceira. Você chega, você dança, você come, você toma mingau, bebe, aí já acabou a festa, não demora estão descendo para ir embora, toca uma música, volta, vai dançar, e, assim, quando vê, já são nove horas da manhã e a festa ainda não terminou, virou uma bagaceira só. Eu quero trazer o carimbó, o brega, a lambada e as guitarradas. Eu quero fazer uma mistura, para todo mundo sentir a festa no interior do Pará. Vai ser tipo banguê, quase como banzeiro. Mais calmo, mais ritmado, com toque de brega, de lambada – uma mistura, porque nós somos bem misturados.
Como foi para a senhora o período da pandemia?
Foi um período difícil. Eu tinha 18 shows fora do Brasil. De Dubai para a frente. Eu terminei a turnê nas Ilhas Canárias e, de repente, aconteceu tudo aquilo. Eu tive covid duas vezes, e graças a Deus não foi tão forte. Eu fui cuidada na minha casa, porque a minha produção fez tudo para eu não ir para o hospital. E eu pensei que era somente uma gripe. Fiquei com uma sequela na escrita, imagine isso para uma pessoa que é professora. Quando ia escrever, eu não sabia. Eu ficava: “Será que é com s, será que é com c?”. Me preocupei muito, mas agora não estou mais preocupada, porque já estou fazendo música novamente.
O que a senhora fez durante o isolamento?
Eu comecei a fazer um tratamento, porque a covid deixou uma sequela nos dentes, deu fraqueza e foi quebrando. E agora fiz a [cirurgia da] vista, de catarata, e vou fazer os dentes, por causa do sorriso da gente, né? Eu sou uma mulher que vive sorrindo. Em agosto, vou dar uma paradinha, mas já sou a escolhida da Feira Pan-Amazônica do Livro. E a minha neta vai fazer as historinhas, que eu conto musicalmente, para deixar um legado para as crianças. Ela está fazendo mestrado sobre a minha história. E agora o Itaú Cultural quer toda a minha história.
Recentemente, a senhora foi homenageada pela União Brasileira de Compositores e se apresentou no Theatro da Paz, que é símbolo da belle époque amazônica e um palco tradicionalmente reservado à música erudita. Como foi essa experiência?
Eu já havia me apresentado lá várias vezes, mas sempre como convidada. Não era o show da Dona Onete. Dessa vez foi um show meu, com os meus convidados. Escolheram uma música minha, Sonho de adolescente, que ninguém conhecia, e o povo ficou maravilhado. Teve convidados como o Mestre Damasceno, a Fafá, o Jaloo. O Mestre Laurentino foi meu preto velho que me levou para a música. Fiquei muito feliz. A Gaby não foi porque está na novela. A festa foi linda, lotou de gente e ficou gente do lado de fora, assistindo pelo telão. Eu fico emocionada, mas não fico caída. Era muita gente mandando presente para mim, por causa também do meu aniversário. Você sabe como eu sou querida pelo pessoal, né? E tinha muitos idosos. Os filhos conseguiram levar os pais.
A senhora foi descoberta primeiro pelos jovens, com o Coletivo Rádio Cipó, e ainda hoje faz muito sucesso entre esse público. A que a senhora atribui esse fenômeno?
Eu acho que estou agora jogando nos três grupos: jovens, crianças e idosos. Quando eu chego no aeroporto, alguém diz assim: “Dona Onete, uma foto, que a minha mãe é sua fã. Ela está bebendo uma caipirinha, bota logo o pitiú”. E todas as festas terminam com Banzeiro. Então, eu acho que eu cheguei devagar, com todo esse meu jeitinho, não me negando a nada, não mexendo com ninguém, não subindo em ninguém. O Pará conseguiu abraçar o que é seu. Porque parece que antes era só aparelhagem, para vencer tinha que ir para São Paulo, Rio. Eu fui por fora, primeiro fazer a minha história fora do Brasil. Hoje, eu canto muito no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília.
A senhora teve um encontro com a Elza Soares, pouco antes da morpte dela, e também esteve presente a professora Zélia Amador de Deus, que é referência do movimento negro no Brasil. Como a senhora se vê, sendo uma mulher negra, amazônida, ocupando esse espaço na música pop?
Foi o que eu disse: “Gente, como foi que eu virei pop no Rock in Rio?”. O pessoal ria, gritava (risos). Mas eu acho que a música vai levando a gente. A Elza tinha ido tocar no Festival Psica e mandaram me chamar. Quando eu cheguei, vi a Elza um pouquinho fraquinha, só respondendo algumas coisas, e eu senti que era hora de perguntar se a Conceição que o Cauby cantava era para ela. Ela só me respondeu assim: “Eu sou Elza da Conceição”. Ela não disse nem sim, nem não. Eu disse: “Elza, eu segui você. Eu lia tudo sobre você”. Quando eu era solteira, comprava revistas das rainhas do rádio e sabia de tudo. Foi uma cantora que levou o Brasil para o mundo. Eu senti que era hora de a gente dar as mãos. Mas eu não pensava que ela já ia falecer. Ela colocou as mãos, e ficou tão linda a foto. Uma dando força para a outra, como se ela tivesse dito: “Agora o legado fica com vocês”.
Do alto dos seus 83 anos, a senhora se coloca como uma mulher moderna, que se tornou referência para outras mulheres. O que a senhora pensa sobre isso?
Eu vejo isso como algo muito bom. Eu já tive o depoimento de uma moça: “Ah, Dona Onete, minha mãe é sua fã. Quando ela está escutando a sua música, ela faz caipirinha, e mais tarde ela está muito doida, bebendo e dançando carimbó”. E eu perguntei: “Você acha isso ruim? Meu amor, você queria estar agora limpando a sua mãe, colocando fralda, passando remédio nela, levando para o hospital, ou você quer essa sua mãe moderna, que ouve, dança, fala e está bem? Então, minha filha, aceite. Ela está cansada, já labutou, não fez o almoço, a janta, limpou a casa? Não é melhor, minha preta, a sua mãe tomar uma cervejinha, sair com as amigas, do que você estar limpando ela?”. Alguns dizem: “Ah, minha mãe é assanhada”. Quanto tempo essa mãe não dançou, não foi em lugar nenhum porque não tinha com quem deixar os filhos? E olha, eu não vou criticar, mas temos métodos. Só que por ser muito romântica e acreditar em tudo que é homem, a mulher, coitada, ela já tem dois, três filhos, arranja uma pessoa e ganha mais um filho. E não é todo homem que quer cuidar de filho. Ele deixa mais um para ela cuidar. Por que ela está grávida? Porque acreditou numa pessoa, que ali teria um homem que ia ajudar a criar os filhos. Novamente acreditou que seria feliz. Talvez um dia eu faça uma música sobre isso. Uma mulher que tem um companheiro que cuida dos seus filhos pode se considerar feliz, porque isso é raro.
E aí chega a Dona Onete, com essa música assanhada, e coloca a mulherada para beber e dançar. A senhora acredita que estamos caminhando para uma libertação maior das mulheres?
Mas você pensa que na minha época eu já não me rebelava? Já. A minha avó não gostava de batom vermelho, e eu saía para comprar um batom muito bonito, que com 24 horas não saía do beiço. Ela pensava que eu ia ser prostituta. A saia era no meio da perna, os vestidos de cintura baixa. E eu sempre “alteava”, queria a bainha mais curta, porque eu não ia usar aquele vestidão de “Maria mijona”. Decotado sempre usei, alcinha. Não usava sutiã, tinha horror a sutiã. Eu já era um pouco rebelde e não sabia se era rebeldia isso. Era um período de três anáguas com renda bordada. Era uma escolha minha, eu não queria ser igual, eu queria sempre ser rebelde. A minha avó não queria que a gente falasse com uma mulher que era desquitada, e eu não entendia. Isso com meus 14, 15 anos. E pobre. Imagine as ricas, que eram mais fechadas. Eu usei minissaia quando apareceu. Mas depois casei e fiquei tolhida. Fui viver a vida dele e não vivi a minha. Engraçado, foram 25 anos vivendo uma vida que eu não podia isso, não podia aquilo, até que eu me rebelei.
E a senhora aceitava isso pela questão do amor?
E dos filhos. Eu tive dois filhos. Eu não tinha para onde correr, ainda não tinha 240 horas de aula. Não dava para me sustentar com filho. E ele era um pai que me fazia o que quisesse, mas para os filhos dele tinha tudo. Vinha uma vizinha e dizia: “Tu não vais ter condição de fazer isso, olha a tua geladeira”. Tu entendes? E muita coisa acontece por isso, porque a mulher não tem para onde correr, ele não deixou ela trabalhar. Ele não deixava, mas eu ia, porque eu tinha um emprego.
E que conselho a senhora daria hoje para as mulheres que estão procurando esse caminho de libertação?
Tem que procurar esse caminho. Você tem filho, vai fazendo a tua vida, te organizando, fazendo o teu extra. Quando tu sentires que tens, aí, sim, tu mandas: “Vai, desgraçado, para lá, vai te quebrar para onde tu quiseres, que agora eu já dou conta de sustentar o meu filho”. Porque, às vezes, eles não querem nem pagar a pensão. A mulher agora está livre, mas é uma liberdade vigiada, tem que prestar conta. Mas vai, minha preta, em frente. Caminha. As portas vão se abrindo, vá seguindo. E homem se encontra em toda parte.
A senhora imaginava que um dia chegaria a cantar em tantos lugares?
Eu sonhava, eu sou muito sonhadora, até agora. Eu tenho 83 anos e ainda sonho. Ainda sonho muita coisa. Eu dizia para a lua que um dia eu iria para o outro lado do mundo. E ela é a mesma lua, só que num posicionamento diferente, naquele mar imenso, ela livre, muito mais livre do que com a gente.
Como a senhora vê esse momento atual, em que o Brasil voltou para o Mapa da Fome?
E cozinha à lenha e a carvão. Estamos regredindo. É muito triste o que está acontecendo.
E qual a sua expectativa em relação ao ano eleitoral? Será que o Brasil vai conseguir virar essa página?
O povo de idade não vai mudar. Vamos apostar na juventude. As mulheres que recebem ajuda do governo vão oscilar. Porque vão para onde ofertam mais, não lembram que aquilo é só agora e depois acaba. É a necessidade que faz isso. Para mim, que venho de luta, que sou lutadora, são os de 16 anos, que querem vencer na vida, ser alguém. Eu estou acreditando, mas se houver uma grande conscientização, que ainda não estou vendo. Partir para a comunidade, como era antigamente. A pessoa fala, entende, reclama, diz onde dói. Em muitos shows o pessoal grita e eu digo: “É a juventude que vai decidir, que tirou o seu título, que vai querer fazer faculdade”. Eu disse no show em Florianópolis: “Vamos cortar o B. Se partir o B, fica o 1 e o 3”.