Cinema de autor

Cinema autoral se destaca no circuito de exibição

Exibições em cinemas, vertentes de séries e festivais em plataformas trazem um amplo espaço para os chamados filmes de arte

Ricardo Daehn
postado em 08/08/2022 10:42 / atualizado em 08/08/2022 10:56
 (crédito: Carlos Eduardo Carvalho/DIVULGAÇÃO)
(crédito: Carlos Eduardo Carvalho/DIVULGAÇÃO)

O impacto de um tipo de cinema transformador e provocativo ecoa por décadas e, claro, pode ser medido pelos estímulos (ou entraves) governamentais para que seja difundido entre povos e culturas. Exemplo gritante do incômodo que pode causar está no mais recente longa-metragem assinado pelo iraniano Jafar Panahi, chamado No bears. Dado o teor da filmografia de Panahi, ele, com passagem multiplicada por festivais internacionais, enfrenta a prisão (em cumprimento à sentença iraniana do começo dos anos 2010). Não por acaso, No bears é centrado em amores que enfrentam a clandestinidade e em sentimentos represados, obstáculos e opressão.

Num crescente asfixiados pelo circuito mais interessado em abraçar garantidos estrondos de bilheteria dos blockbusters, os filmes com assinatura de cineastas empenhados em defender conceitos, pluralidade de temas e traçado artístico resistem. Percebido como espécie de concorrente do circuito, o streaming trata de apagar o estigma, cooptando cineastas de grife para o meio, no desenvolvimento de séries. Depois do sueco Ingmar Bergman, um dos cineastas mais notabilizados por conteúdo e estética, ter o clássico Cenas de um casamento (1973) adaptado para a HBO, em Scenes from a marriage; uma vitrine forte como o Festival de Veneza (ao fim do mês) trará cineastas como Oliver Stone (obcecado pela dramatização de feridas americanas, em filmes como George W. Bush, Nixon e JFK) investindo numa escala documental, enquanto diretores como Lars von Trier e Nicolas Winding Refn despontarão no evento com séries internacionais.

"Séries trazem um fluxo de energia que funciona a todo momento: são acessíveis e de consumo à mão, sempre que se quer", comentou, ao site IndieWire, Nicolas Winding Refn, que exibirá ao mundo Copenhague cowboy, série detida no submundo do crime Dinamarca. A experiência com a Netflix de um "neo-noir" em seis episódios dá sequência à obra em cinema com filmes como Só Deus perdoa e Drive. Refn viu a experiência na série como "a ideologia, totalmente nova, de como existir". Reconhecido pela produção densa de filmes violentos como Anticristo (2009) e Ninfomaníaca (2013), o dinamarquês Lars von Trier exibirá, em breve, cinco episódios de Riget Exodus. Na série, portas se abrem para uma conexão com The Kingdom, produto audiovisual fantasmagórico que examinava o completo colapso de uma instituição hospitalar.

O ambiente de consultórios e hospitais psiquiátricos se apresenta na obra de um dos maiores estetas do cinema mundial: o sueco Ingmar Bergman. Morto há 15 anos, ele ganhou uma breve retrospectiva (acessível no Telecine Cult da GloboPlay). Premiado em festivais como Veneza e Berlim, o filme Morangos silvestres (1957) está no pacote que ainda inclui O sétimo selo, destacado em Cannes, e Face a face, raro longa do mestre do aprofundamento psicológico que, nos anos de 1970, colocou a parceria de longa data Liv Ullmann em performances expressivas como a de Face a face, pelas quais competiu ao Globo de Ouro, o Oscar e ao britânico Bafta.

Contemporâneo do mestre sueco, Pier Paolo Pasolini, um dos cineastas mais provocativos de todos os tempos, teve o clássico Mamma Roma (1962) recentemente exibido na 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, iniciativa difusora de uma refinada sétima arte. Partidário da mesma linha, o Festival Varilux (trampolim para a estreia de fitas francesas) trouxe visibilidade para o musical Tralala, estrelado por Mathieu Amalric e em cartaz na cidade. Com atores usando máscaras (dada a Covid-19), o longa revela a trajetória de um pobre músico parisiense que se vê encantado por uma mulher anônima.

Uma dupla poderosa de cineastas autorais, atualmente, ocupa telas de cinemas de Brasília. Um herói, vencedor do Grande Prêmio do Festival de Cannes, traz a inconfundível assinatura do iraniano Asghar Farhadi, que, desde 2009, com Procurando Elly, celebra uma estrada de sucessos que inclui O apartamento, A separação e O passado, todos ancorados em roteiro rocambolesco e mirabolante. Com Um herói não é diferente: um homem endividado luta incessantemente em limpar o nome e deixar a cadeia. Dono de filmes esquisitos, do naipe de Spider e de Gêmeos — Mórbida semelhança, o octogenário David Cronenberg volta a perturbar com o longa Crimes of the future, exibido nos cinemas e ainda na plataforma Mubi. Deformidades mentais e físicas estão ressaltadas no enredo que mistura cirurgia e sexo, num período decadente em que materiais sintéticos e tatuagens se encontram no curso de uma discutível evolução humana. De gosto muito discutível também, a nova obra do tailandês Apichaptong Weerasethakul, Memória, que coloca a personagem de Tilda Swinton buscando origens, na Colômbia, está disponível no streaming da Mubi. A Mostra Ecofalante de Cinema (com programação, até 17 de agosto, em www.ecofalante.org.br) é outra via de acesso para uma centena de filmes reveladores de originalidade.

A caminho

Entre os filmes que vão despontar, em futura temporada dos cinemas e streamings, muitos chegam embalados com a carga autoral. Já negociado com a Netflix, Bardo marca o retorno ao México Alejandro González Iñárrtitu, depois de O regresso (2016). Memórias e o olhar para realidade contemporânea de um jornalista e documentarista se misturam no roteiro coescrito por Nicolás Giacobone (parceiro de Iñarritú em filmes com alta carga artística como Biutiful e Birdman). Também crivado com a expectativa do retorno, Todd Field, autor de Entre quatro paredes (2001) e Pecados íntimos (2006), fitas independentes bem destacadas pelo Oscar. Aos 58 anos, o diretor emplaca Tár, embalado pela jornada da maestrina Lydia Tár (Cate Blanchett), pronta para atravessar campo de poder e destruição, ao se afirmar como primeira profissional a desbravar o ambiente de uma orquestra sinfônica habitada por ideologia bastante machista.

Sob a chancela da Netflix, o drama White noise, adaptado pelo cineasta Noah Baumbach da literatura de Don DeLillo, abrirá o Festival de Veneza. Autor de títulos como História de um casamento (2019) e Frances Ha (2012), Baumbach traz Adam Driver e Greta Gerwig num elenco que ainda inclui Don Cheadle, na pele de um casal em crise, como no romance lançado em 1985. Por cinco vezes casado e pesquisador dos feitos de Hitler, o professor Gladney (Driver), pai de quatro filhos, entra em extremados debates com a esposa sobre a possibilidade de ser o primeiro a morrer. Ambos, por sua vez, buscam terapias de cura, dado o medo extremado da morte, insuflado pelas ameças química na cidade em que moram, sempre sob simulações e treinamentos de evacuação de emergência.

Depois de investir forte em tramas perturbadoras e que mexiam com transformações no corpo das personagens femininas de Cisne Negro (em que Natalie Portman alçava voo) e Réquiem para um sonho (no qual a veterana Ellen Burstyn definhava), o diretor Darren Aronofsky prepara para 2022, o lançamento de A baleia, em que o ex-galã Brendan Fraser (A múmia) encabeçará um tipo de 272 quilos preocupado em estreitar laços perdidos junto à filha. O diretor de fotografia Matthew Libatique — de títulos como Nasce uma estrela e Mãe! — responde pela atmosfera visivelmente tensa do longa.

Também no filão de filmes esperados pelos cinéfilos mais exigentes, o diretor inglês Martin McDonagh comparecerá, em breve, nas telas, com The banshees of Inisherin, cinco anos depois da conquista de prêmios Oscar para os atores Sam Rockwell e Frances McDormand, em Três anúncios para um crime. O novo filme, a exemplo de Na mira do chefe, que lançou McDonagh em 2008 e trazia cidade belga com muita relevância, é centrado em uma ilha na Irlanda com cotidiano propenso para que personagens como o de Colin Farrell (O Pinguim de Batman) reneguem amizades.

Conhecido, mundialmente, pelo sucesso de Me chame pelo seu nome (2017), o cineasta Luca Guadagnino é outro com filme de toques autorais a chegar nos cinemas, ainda em 2022: Bones and all. No mesmo compasso de horror que impregnou a adaptação do clássico Suspiria (2018), Guadagnino traz para o primeiro plano os personagens Lee (Timothée Chalamet) e Maren (a atriz canadense Taylor Russell, de Escape room), saídos da literatura de Camille de Angelis, na qual jovens podem muito bem empreender uma jornada de entendimento para compulsões canibais.

Entrevista: Antônio Pitanga //ator de Casa de antiguidades

O que caracteriza o cinema autoral, em um filme como Casa de antiguidades, que representou o Brasil no Festival de Cannes e foi recém-exibido nas telonas?

O que caracteriza o cinema autoral é exatamente uma assinatura de uma época, de um olhar, de uma década, de pessoas comprometidas com todo o processo político, social e racial. Há a questão de o povo ser trazido para o primeiro plano. É a grita desse povo sofrido, oprimido e a assinatura de um diretor presente, como um caso de João Paulo Miranda Maria. Ele traz exatamente, com relevância, a problemática brasileira.

Consegue perceber um cinema negro brasileiro, como um todo, formando painel?

Claro que percebo. Percebo a presença deste painel do cinema, que é brasileiro e é um cinema internacional, mas principalmente, brasileiro. Na tela, há o surgimento maciço da problemática negra: seja na questão racial, na invisibilidade e na questão exatamente de todo tipo de preconceito. Então o cinema brasileiro se propõe também a isso: denunciar. Vejo, e tenho certeza de que é um painel bastante dos tempos de hoje, atuais, e que representa, sim, esse momento. Há a tela e o grito desta população negra.

Você se percebe como um representante do cinema autoral, dada a carreira?

Não sei se me considero um representante de cinema nacional. Talvez, pela longa carreira e de ter grandes participações em mais 80 filmes e, principalmente, na implantação e no surgimento de um dos movimentos mais importante no cinema brasileiro e internacional que foi o cinema novo. Ele veio, como veio a novelle-vague e o neorrealismo. O próprio cinema americano tinha uma proposta autoral. Tudo se identifica em Casa de antiguidades. No cinema de autor, se vê a assinatura de um Glauber Rocha, de um Leon Hirszman, de um Cacá Diegues, de um Joaquim Pedro dos Santos, de um Nelson Pereira dos Santos e de um Ruy Guerra. São as assinaturas que identificam que movimento é esse: que identidade é essa, brasileira. Que tempo é este que nós vivemos no passado, e estamos vivendo hoje. Então, a assinatura é importante. Casa de antiguidades é autoral, como foi o Barravento, como foram Vidas secas e Memórias do cácere, A grande cidade. Há tantos outros: Macunaíma, São Bernardo, Os fuzis e Os deuses e os mortos — todos trazem registro autoral.

 

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

  • Riget exodus: um Lars von Trier a caminho
    Riget exodus: um Lars von Trier a caminho Foto: 79 Veneza/Divulgação
  • Bardo, de Alejandro G. Iãarritú
    Bardo, de Alejandro G. Iãarritú Foto: Redrum/Divulgação
  • White Noise, de Noah Baumbach, tem inspirações literárias
    White Noise, de Noah Baumbach, tem inspirações literárias Foto: Passage Pictures/Divulgação
  • Cate Blanchett em Tár, de Todd Field
    Cate Blanchett em Tár, de Todd Field Foto: Focus Features/Divulgação
  • Bones and all: juventude perturbadora
    Bones and all: juventude perturbadora Foto: Vision Distribution/Divulgação
  • No Bears, de Jafar Panahi
    No Bears, de Jafar Panahi Foto: 79 Veneza/Divulgação
  • 1- David Cronenberg traz o polêmico Crimes of the future 

2- No Bears, de Jafar Panahi

3 - Um herói, destaque do Festival Varilux ganha as telas da cidade

4 - Riget exodus: um Lars von Trier a caminho

5 - White Noise, de Noah Baumbach, tem inspirações literárias

6- Cate Blanchett em Tár, 
de Todd Field

7 -  Bones and all: juventude perturbadora

8 - Bardo, de Alejandro G. Iñarritú
    1- David Cronenberg traz o polêmico Crimes of the future 2- No Bears, de Jafar Panahi 3 - Um herói, destaque do Festival Varilux ganha as telas da cidade 4 - Riget exodus: um Lars von Trier a caminho 5 - White Noise, de Noah Baumbach, tem inspirações literárias 6- Cate Blanchett em Tár, de Todd Field 7 -  Bones and all: juventude perturbadora 8 - Bardo, de Alejandro G. Iñarritú Foto: Fotos: MetropolitanFilmExport/Divulgação; 79 Veneza/Divulgação; Divulgacao /Festival Varilux; 79 Veneza/Divulgação; Passage Pictures/Divulgação; Focus Features/Divulgação; Vision Distribution/Divulgação e Redrum/Divulgação
  • Um herói, destaque do Festival Varilux ganha as telas da cidade
    Um herói, destaque do Festival Varilux ganha as telas da cidade Foto: Divulgacao /Festival Varilux
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação