Apenas dois artigos compõem a Lei Áurea, publicada em 13 de maio de 1888. O primeiro declara extinta a escravidão e o segundo revoga as disposições em contrário. Outros projetos de lei circulavam na época, mas o que a princesa Isabel assinou era o pior de todos. Nenhuma palavra em relação à integração, indenização, proteção ou igualdade de direitos para os ex-escravos. Libertos e jogados à própria sorte, vulneráveis, subjugados e discriminados, passariam a fazer parte de uma população relegada à margem da sociedade, situação que não mudou muito desde o final do século 19.
É esse cenário que Laurentino Gomes investiga no terceiro e último volume da série Escravidão, que acaba de sair do forno e será lançado pelo autor nesta terça-feira (19/7), às 19h, na Livraria da Travessa (CasaPark). "O Brasil fingiu que resolveu o problema da escravidão com a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, mas nunca se preocupou em enfrentar o legado do sistema escravista. Nossos grandes abolicionistas do século 19 diziam que não basta ao país parar de comprar e vender gente como mercadoria. Era preciso também incorporar essa população à sociedade brasileira na condição de cidadãos com os mesmos direitos assegurados aos brancos descendentes dos colonizadores europeus", explica o escritor.
O Brasil era independente há pouco mais de seis décadas quando a abolição libertou os escravos no país. Foram quase cinco séculos de tráfico de seres humanos entre o continente africano e a costa brasileira, tempo suficiente para arrancar de suas terras e escravizar quase seis milhões de pessoas. Esse contingente foi responsável por transformar a então colônia e depois república em uma potência exportadora de produtos agrícolas para a Europa. Como era de se imaginar, a supressão da mão de obra escrava, origem de lucros estratosféricos e gastos baixíssimos, causou pânico em praticamente todas as esferas da sociedade da época. Em solo brasileiro, quem não era escravo se beneficiava, de alguma forma, do trabalho dos negros trazidos da África.
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São as histórias dessa sociedade que Laurentino traz para Escravidão Volume III - Da independência do Brasil à Lei Áurea. Histórias de traficantes brasileiros radicados na África, de fazendeiros que lutaram para manter o sistema, de membros da sociedade que ensinavam como aplicar castigos, de barões e fidalgos muito empenhados em fazer a prosperidade do império às custas de muito sangue e suor de cativos desfilam por um Brasil que não é tão antigo assim. "A troca de favores entre o Estado e os senhores da terra representava uma total inversão de valores porque premiava a violência do chicote e a exploração imoral do trabalho em regime de cativeiro. Eu diria que isso não mudou muito desde então", repara Laurentino. "Os nomes de senhores poderosos e arbitrários, muitas vezes envolvidos em casos de corrupção e atividades ilegais, que frequentam os salões do poder, merecem destaque nas colunas sociais e ocupam posições respeitáveis na sociedade brasileira de hoje são bem conhecidos."
O escritor conta que o trabalho de pesquisa para dar forma à trilogia mudou sua forma de encarar certos aspectos da escravidão. "Percebi que a escravidão foi e continua a ser uma espécie de espinha dorsal de nossa história", diz. "A independência, o nascimento e a construção do Estado nacional brasileiro, a organização de suas leis e instituições, tudo teve como propósito a manutenção e a perpetuação do regime escravista. Como resultado desse aprendizado, também fui levado a mudar algumas opiniões e convicções pessoais enquanto pesquisava e escrevia os livros." Durante algum tempo, por exemplo, o autor resistiu em aceitar a ideia de que o negro brasileiro fosse vítima de um processo de genocídio. A palavra parecia excessivamente forte e Laurentino acreditava que era demais falar em extermínio, já que cada africano embarcado no navio negreiro era um ativo econômico, mais valioso vivo do que morto.
Ao ler autores negros como Abdias do Nascimento, o escritor mudou de ideia. "Embora não tenha havido uma política deliberada de extermínio, o resultado prático foi, sim, de aniquilamento. Quase dois milhões de seres humanos morreram na travessia do Atlântico a bordo dos navios negreiros. Outros milhões morreram precocemente no Brasil, onde a expectativa de vida entre as pessoas escravizadas era muito baixa", constata. O autor, que dedica alguns capítulos aos abolicionistas Luiz Gama, José do Patrocínio e André Rebouças, lembra ainda que genocídio nem sempre se resume ao extermínio físico de pessoas e envolve aspectos mais sutis de sua identidade, como a memória, a cultura, a língua, as crenças religiosas, a possibilidade de sobreviver e prosperar. "São coisas que o Brasil tem sistematicamente recusado à sua população afrodescendente. Por essa razão, hoje tendo a concordar que existe, sim, um processo de genocídio negro em andamento no passado, no presente e, se nada for feito, também no futuro do Brasil." Em entrevista, Laurentino Gomes fala sobre Escravidão III e como o Brasil foi forjado e continua sendo moldado com base nas relações criadas no período mais sórdido de sua trajetória.
Escravidão Volume III - Da independência do Brasil à Lei ÁureaDe Laurentino Gomes. GloboLivros, 592 páginas. R$ 69,90
Entrevista/ Laurentino Gomes
Que impacto essa abolição tardia e a classificação de maior nação escravocrata do ocidente ainda têm no Brasil de hoje?
O baiano André Rebouça defendia a ideia de que, após a abolição, seria necessário fazer do Brasil uma "democracia rural", distribuindo as terras dos latifúndio para que os ex-escravos e suas famílias tivesse acesso ao trabalho, à renda e à riqueza. Outro abolicionista, o também baiano Cesar Zama, afirmava que a alfabetização e a educação da população negra deveria ser um complemento natural e obrigatório da Lei Áurea. Nada disso foi feito. Essa segunda abolição jamais aconteceu. O Brasil nunca fez uma reforma agrária. Jamais educou, deu moradias, renda e empregos decentes às vítimas da escravidão. Nunca promoveu os negros e mestiços à condição de cidadãos plenos, com os mesmos direitos e deveres assegurados aos demais brasileiros. A população afrodescendente foi abandonada, marginalizada, explorada sob formas mal disfarçadas de trabalho forçado e mal remunerado. E assim permanece até hoje.
“O historiador norte-americano Stuart B. Schwartz descreveu o Brasil da escravidão como uma sociedade altamente hierarquizada, em que todo mundo aspirava ser nobre e viver sem trabalhar!”: que conexões podemos fazer entre a elite escravocrata do século 19 e a elite brasileira de hoje? Que heranças isso deixou?
Neste início do século 21, o Brasil é um dos países mais segregados do mundo. Essa terrível realidade é visível na paisagem e na geografia. Um sistema informal de castas garante que pessoas de descendência africana habitem as periferias insalubres e perigosas das metrópoles, dominadas pelo crime organizado, pelo tráfico de drogas, sem qualquer assistência do Estado brasileiro. Enquanto isso, os chamados bairros nobres, com boa qualidade de vida, segurança, serviços públicos e educação de qualidade, são privilégios de pessoas descendentes de colonizadores europeus, que se servem do trabalho doméstico e de baixa qualificação dos primeiros. Os indicadores sociais mostram um fosso enorme de desigualdade. Estatisticamente, a pobreza no Brasil permanece como sinônimo de negritude. Com raras exceções, quando mais negra a cor da pele, maior é a chance de uma pessoa ser pobre. Os descendentes de africanos ganham menos, moram em habitações mais precárias, estão mais expostos aos efeitos da violência e da criminalidade e têm menos oportunidades em todas as áreas, incluindo emprego, saúde, educação, segurança, saneamento, moradia e acesso aos postos da administração pública. O racismo brasileiro é algo profundo e inquietante, de natureza estrutural, cultural. No passado, incluiu projetos de “branqueamento” da população e estudos e tratados de “eugenia”, nos quais negros eram apontados como inferiores tanto na anatomia quanto em suas faculdades mentais. E podem ser observados ainda hoje em comportamentos inaceitáveis de preconceito e intolerância, profundos e graves, ao ponto de inviabilizar no futuro a própria existência do Brasil como um país decente.
Uma impressão que o livro deixa é que não há branco daquela época que não se beneficiasse da escravidão. Se o Brasil fosse hoje apontar nomes e famílias que têm um histórico que se beneficiou da era escravocrata, como ficaria a sociedade brasileira?
Obviamente, a imensa maioria dos beneficiários da escravidão era constituída por homens brancos, mas há nuances mais complexas nessa histórias. Na definição de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, a escravidão era um cancro que contaminava e roía as entranhadas da sociedade brasileira. Disseminado por todo o território brasileiro, o escravismo perpassava todas as atividades e todas as classes sociais. Ricos e pobres, fazendeiros, comerciantes e profissionais urbanos, instituições públicas e empresas privadas, ordens religiosas, bispos e padres, brancos, negros e mestiços – todos, indistintamente, eram donos de escravos ou almejavam sê-lo. Havia até mesmo casos de ex-escravos que, uma vez alforriados, se tornavam donos de escravos. Comprar e vender gente era o maior negócio do Brasil. Nos anúncios de jornais, os escravos brasileiros eram comprados, vendidos, leiloados, alugados, hipotecados, emprestados, doados, transmitidos em herança e até mesmo trocados um pelo outro, em um sistema de escambo que não envolvia transação monetária. No meu entender, hoje seria muito difícil fazer um ajuste de contas detalhado a respeito de quem se beneficiou de quem foi vítima do regime escravista, envolvendo nomes e famílias. Seria uma tarefa dolorosa e politicamente desastrosa. Em vez disso, prefiro que o pagamento dessa dívida seja encarada como um investimento no futuro do Brasil. Precisamos urgentemente fazer a “segunda abolição” proposta pelos abolicionistas do século XIX, de modo a dar oportunidades aos descendentes dos escravos, para que se realizem plenamente em suas vocações e talentos. Só assim teremos um país mais rico, justo e digno dos nossos sonhos.
Como os eventos da abolição e da independência estão ligados?
Entre a independência e a abolição, a elite agrária escravista brasileira procurou defender seus interesses com unhas e dentes. Na tarde em que o príncipe dom Pedro fez o chamado Grito do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822, o Brasil estava empanturrado de escravidão. E assim permaneceria até quase o final do século xix. Três principais argumentos a respeito da escravidão foram exaustivamente debatidos naquela época. Todos eles assentavam-se na antiga ideologia escravista que durante os três séculos anteriores servira de alicerce para o cativeiro africano. O primeiro afirmava que, no fundo, a escravidão era benéfica para os negros, ao retirá-los da ignorância e da barbárie do continente africano para incorporá-los à supostamente humanista e avançada civilização católica portuguesa que se instalava nos trópicos. Dizia-se também que o negro seria incapaz de sobreviver em liberdade, cabendo aos senhores brancos educá-los, orientá-los e tutelá-los de todas as maneiras possíveis – incluindo, obviamente, o uso do chicote e outros meios de punição e contenção, quando necessários à disciplina e ao bom funcionamento do sistema. Por fim, sustentava-se que a escravidão, embora condenável do ponto de vista humanitário, era “um mal necessário”. Dependente da economia agroexportadora, de mão de obra intensiva, a economia brasileira jamais poderia sobreviver sem o cativeiro africano. A abolição da escravidão levaria, portanto, à ruína nacional. Isso não aconteceu. A lavoura continuou tão próspera quanto antes e a mesma elite agrária que antes mandava no império continuou a mandar na república, na chamada “política do café-com-leite”, também conhecida como “república dos fazendeiros” até pelo menos 1930.
A expressão “Para inglês ver”, que dá título a um dos capítulos, acabou sendo, em parte, definidora de nossa sociedade?
Essa expressão tem origem em uma lei aprovada pelo parlamento brasileiro em 1831 que formalmente acabaria com o tráfico de escravos da África para o Brasil. Era resultado do tratado de reconhecimento da independência do Brasil por parte da Inglaterra, assinado pelo imperador Pedro I em 1826. Ao sancioná-la, no entanto, o governo imperial não tinha, de fato, a intenção de que fosse cumprida. O objetivo era apenas conter as pressões internacionais e acalmar os ânimos no front diplomático. Enquanto isso, navios negreiros abarrotados de homens e mulheres escravizados continuaram a desembarcar suas cargas ao longo do litoral brasileiro sob o olhar cúmplice das autoridades. Era mesmo só “para inglês ver”. Juízes, oficiais navais, funcionários portuários e agentes policiais se encarregavam de acobertar a ação dos traficantes, mediante boas propinas. A “lei para inglês ver” era também exemplo de um Brasil de faz-de-conta, que fingia ser uma coisa, mas a verdade era outra. Nas leis, no funcionamento das instituições, na arquitetura, nas artes, nas festas e nos saraus da corte do Rio de Janeiro, o país aparentava ser uma terra civilizada, rica, elegante e educada. Esse Brasil de sonhos, no entanto, confrontava-se com outro, real e bem diferente, criando uma contradição difícil de sustentar no longo prazo. A realidade nas ruas, lavouras e fazendas das regiões ermas do país era de escravidão, pobreza e analfabetismo. E de tráfico ilegal e clandestino de africanos. Hoje, quando vejo o que acontece nos salões do poder em Brasília, me parece que ali ainda existe um país “para inglês ver”. É uma miragem. A realidade nas ruas é bem diferente do que indica a fotografia oficial.
“(...) os negros libertos só seriam tolerados na sociedade brasileira se continuassem a cumprir o papel que deles se esperava: o de produzir as riquezas que asseguravam o bem-estar e os privilégios da classe dominante”: isso mudou?
A escravidão hoje não é apenas tema de livros de história. É uma realidade concreta no Brasil. Muitas de nossas relações sociais e econômicas são de natureza escravista. São frequentes as denúncias de trabalho análogo à escravidão no país. O famoso quartinho de empregada é, de certa forma, uma extensão urbana das senzalas rurais do período escravocrata. Depois da Lei Áurea, muitos ex-escravos continuaram a trabalhar para seus antigos senhores, morando nas mesmas senzalas de antes, sob as mesmas condições, agora apenas em troca de um minguado salário que mal dava para cobrir as despesas relacionadas à própria sobrevivência. Muitas famílias migraram para as periferias de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, dando início ao fenômeno das favelas que hoje marcam a paisagem das metrópoles brasileiras. Outra parte se constituiu em população móvel, flutuante, que se deslocava de uma região para outra de acordo com os períodos de plantio e colheita e as necessidades de trabalho sazonal. Infelizmente, essa situação se mantém intocada. Quem tiver um olhar atento, pode observá-la na paisagem brasileira.
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