Televisão

Tema de minissérie, Isabel Allende diz que falta compaixão ao mundo

Série do canal Lifetime acompanha a vida da escritora chilena Isabel Allende, uma das autoras mais lidas da América Latina

Nahima Maciel
postado em 29/07/2022 11:00 / atualizado em 29/07/2022 12:12
 (crédito: Reprodução)
(crédito: Reprodução)

Quando assistiu ao filme A casa dos espíritos, Isabel Allende achou a adaptação de seu romance de estreia para o cinema “diferente”. De amor e de sombras, para ela, ficou melhor que o livro. Agora, a escritora chilena está encantada com a capacidade de as telinhas contarem sua trajetória. Produção do canal Lifetime que estreia nesta sexta-feira (29/7), às 20h, Isabel mergulha na vida de uma das autoras mais lidas da América Latina para contar como uma jovem jornalista, exilada pela ditadura militar chilena, conseguiu se transformar em um dos maiores fenômenos literários do mundo ao escrever ficções nas quais aproveitava as histórias ao seu redor incrementadas com um olhar realista fantástico.

Iniciado há cinco anos e dividido em três episódios, o projeto tem a chilena Daniela Ramirez no papel de Isabel e deixou a autora impressionada. Em entrevista coletiva realizada on-line para divulgar a série, ela contou que, quando foi procurada pelo canal, deu todas as autorizações, conversou com os produtores, mas não acreditou que a produção sairia do papel. “Porque muitos projetos já me foram apresentados e não foram feitos”, explica. “ Eu só pedi que tivessem muito respeito pelas outras pessoas que aparecem. Minha vida está nos meus escritos, mas outras pessoas que aparecem têm suas vidas privadas e não precisam ser expostas por culpa minha. Pedi que tivessem cuidado. E tiveram.”

 Crédito: Lori Barra/Divulgação. Escritora Isabel Allende.       Caption
Crédito: Lori Barra/Divulgação. Escritora Isabel Allende. Caption (foto: Lori Barra/Divulgação)

A autora conta que a verossimilhança com algumas situações vividas na realidade era tão grande que ela não conseguiu assistir a certas cenas. Uma delas foi a da morte de sua filha, Paula, em dezembro de 1992, vítima de porfíria, uma condição genética que pode se tornar crônica e causar a morte. “Foi exatamente como mostra a série”, conta Isabel, ao lembrar do momento em que recebeu do marido o anúncio da internação da filha. “Eu estava na Espanha, lançando O plano infinito, com um copo de champanhe na mão, e meu marido cruzou a sala e me disse que Paula estava no hospital. Entrei no primeiro avião que saiu e fui para o hospital. E entrei em outro momento da vida. Virei outra pessoa, começou outra etapa da minha vida, terminou minha juventude aí.”

Ela conta sobre a perda da filha e o luto no livro Paula, publicado em 1995. “Foi um livro que me tirou do luto e me permitiu continuar a viver”, lembra. Foi para a filha que a escritora criou a Isabel Allende Foundation, dedicada a assegurar os direitos e a liberdade de mulheres e meninas.

Muito antes da morte de Paula, a autora precisou seguir para um exílio na Venezuela após o golpe militar no Chile, em 1973. Foi no exterior, entre um emprego no qual trabalhava 12 horas por dia e a mesa da cozinha que ela escreveu A casa dos espíritos.

Publicado em 1982, o romance trazia uma combinação de narrativa mágica com memórias conduzida por uma voz feminina que caiu nas graças das leitoras latinoamericanas e levou Isabel para o topo das listas de mais lidos. “Tudo isso foi dito muito depois. Quando isso ocorreu, ninguém pensava assim. Existia o boom da literatura latinoamericana dos anos 1960, e haviam apenas vozes masculinas, não porque as mulheres não estivessem escrevendo, mas seus livros eram publicados em edições menores, mal distribuídos, a crítica ignorava, os professores e literatura não mencionam”, conta. “Havia uma falta de respeito total pelo trabalho das mulheres”

Ela lembra que, quando A casa dos espíritos fez sucesso, acabou apontada como a única voz feminina do boom da literatura latinoamericana fantástica. “Mas não era o boom, era o pós-boom”, garante. “O que aconteceu com esse livro é que teve tanto êxito com as mulheres que os editores da Europa e da América Latina se deram conta que mais mulheres compram ficção e querem ler livros escritos por mulheres. Havia um mercado aí. E esse mercado foi descoberto. Hoje há um monte de mulheres jovens extraordinárias que estão escrevendo livros que estão formando um movimento, uma voz que não existia há 40 anos.”

Com 23 romances publicados, dois de contos e algumas aventuras no universo infantojuvenil, Isabel se tornou uma voz feminina e feminista na literatura da América Latina e fez disso uma espécie de bandeira. “Estou tão feliz de ser mulher, Não mudaria por nenhum homem. A coisa que mais me dá felicidade hoje é a companhia e a solidariedade de outras mulheres. Não somos todas rivais, isso é uma coisa inventada pelos homens. Somos companheiras, irmãs. E temos que estar juntas e conectadas. Uma mulher só é vulnerável, uma mulher acompanhada é invencível”, garante Isabel, hoje radicada nos Estados Unidos. Confira abaixo trechos da entrevista coletiva concedida pela autora.

A casa dos espíritos

Quando escrevi a carta (que deu origem ao livro) estava vivendo no exílio, na Venezuela, depois do golpe. Meu avô estava morrendo e minha forma de me despedir foi escrever uma carta porque não podia voltar ao Chile. Mas, na segunda ou terceira páginas, me dei conta que não era uma carta como todas. Me dei conta que ele não leria, e me disparou a imaginação, as lendas da família, as memórias do passado, as lembranças que tinha dele, meu país perdido, mas tudo saiu como uma torrente, sem que tivesse que pensar muito. E ao cabo de um ano trabalhando à noite, porque tinha um trabalho de 12 horas diárias, tinha um trabalho de mais de 500 páginas na mesa da cozinha, que era A casa dos espíritos.


Reescrever um de seus livros

Preciso não pensar nisso porque teria que mudar muitas coisas, há hoje uma postura politicamente correta que não havia na época. Há palavras que não se pode usar hoje, então teria que eliminar, teria que revisar tanto que não gostaria nem de começar. Quando termino um livro, ele se vai, não posso mudar nada, ele é do público.

Feminismo

Nos anos em que vivemos, o movimento feminista alcançou muito, mas não conseguiu o que achávamos que havíamos alcançado em todos esses anos. Não acabamos com o patriarcado, não acabamos com o machismo e basta qualquer emergência de qualquer índole para que as mulheres percam todos os seus direitos. É Muito difícil, não alcançamos tudo que queríamos, mas isso não significa que o movimento fracassou, significa que o caminho é mais lento. Não se pode pedir que sejamos todas iguais, os homens não são todos iguais, mas têm as mesmas oportunidades e é isso que pedimos. O que digo é que teremos que substituir o patriarcado que dá supremacia ao homem, temos que trocar por um manejo do mundo no qual homens e mulheres, em igual número e com igual poder, tomem as decisões.

Digno de celebração na série

Digno de celebração foi quando escrevi A casa dos espíritos, porque mudou minha vida e se tornou uma voz das mulheres. Já a parte que me apaixonei por um argentino e fui embora viver com ele, deixando tudo pra trás, não é que queria que não estivesse na série, queria não ter vivido isso, porque machucou muito a todos, especialmente meus filhos. E o mais difícil foi a morte de Paula.

Gênero

Difícil generalizar, porque agora os gêneros estão muito borrados, você pode ser tantas coisas, há crianças agora que dizem que não são binárias, que um dia são homem e no outro, mulher. E por que não? Isso não existia quando eu era jovem, os gêneros eram muito marcados. Me fascina ver os jovens de agora com essa fluidez que permite aos homens assimilar e entender muitas coisas das mulheres e às mulheres também entender e assimilar muitas coisas dos homens. Tenho esperança de que seja o princípio de uma mudança muito mais profunda.

A morte

Um umbral. Quando Paula morreu, nos meus braços, senti que algo ia para outra parte, que não era um fim, era uma transição, o início de uma viagem. E nessa noite da morte de Paula, foi como uma noite sagrada, algo misterioso, silencioso, algo que requeria força. Mas, sem dúvida, senti que era um umbral. Pouco depois nasceu minha neta, fui a primeira pessoa a tê-la nos braços, ficou para mim cortar o cordão. E essa sensação de que ela vinha do outro lado voltou.

O que falta?

Pessoalmente não me falta nada, sobra tudo. Mas em idealismo, em relação ao que eu queria que o mundo fosse, falta compaixão, igualdade, inclusão, beleza. Vivemos em um estado de permanente violência e cobiça.

 

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