Uma das delícias da ficção é vê-la concentrar e costurar um punhado de histórias, diálogos, cenas e situações pescadas do mundo real, mas que, de tão bem alinhavadas, parecem a mais pura invenção. É sinal de que a realidade pode superar a ficção quando se trata do impensável, mas é preciso habilidade para transformar isso em narrativa. Clara Drummond e Eliana Alves Cruz são dessas que conseguem levar para a literatura um Brasil que, infelizmente, não é nada ficcional. Em dois romances recém-lançados, as autoras costuram histórias de dois mundos completamente diferentes, mas que se encontram todos os dias na sociedade brasileira.
Mabel é a filha de uma empregada doméstica que estuda Medicina em Solitária. O título faz referência aos quartinhos de empregada tão normais para a maioria dos brasileiros, mas um símbolo de como a arquitetura nacional incorporou sem grandes dramas a tragédia das senzalas e da escravidão. No prédio de classe média alta no qual a mãe da personagem trabalha cabe todo um Brasil acostumado à servidão e pouco incomodado com as desigualdades que sobem e descem pelos elevadores de serviço.
A patroa que deixa o filho da empregada cair pela janela, a vizinha que mantém uma trabalhadora em condições análogas à da escravidão, o porteiro que luta para manter os dois filhos na escola, um aborto feito em condições perigosíssimas e a covid-19 que balança e abocanha a vida dos mais vulneráveis estão no romance de Eliana Alves Cruz. A autora parece ter ansiedade de colocar em Solitária o noticiário recente e, com ele, constrói uma narrativa resultante de uma condição histórica.
A ideia para Solitária começou quando Eliana escrevia Água de barrela, mas foi apressada pela pandemia. "Todo mundo foi para suas solitárias, e esses casos de pessoas que não conseguem viver sem empregadas, as primeiras vítimas da covid-19 no Brasil, as histórias de cárcere privado, tudo isso apressou o projeto, Pensei que o momento de falar disso era agora", conta. Para escrever o livro, Eliana, que também é jornalista, mergulhou no tema, pesquisou e ouviu muitas histórias de mulheres que foram ou estão empregadas domésticas.
Motivada também pela revolta e pelo questionamento, ela levou para Solitária uma temática à qual se dedica desde o primeiro romance, Água de barrela, publicado em 2016. "Sou uma mulher inequivocamente negra e ser uma mulher negra baseia toda minha experiência no mundo", avisa. "Então, tudo que escrevo tem alguma coisa disso. Mas tento não pegar pelo clichê. Tem uma crueldade na sutileza no dia a dia, então tento sair um pouco do clichê do racismo clássico, de situações muito grotescas, que estão aí, toda hora. Precisamos desarmar algumas bombas relógios que a história armou para nós e que, de vez em quando, explodem."
Hipocrisia
É para o mundo das artes plásticas que se volta o olhar crítico de Clara Drummond em Os coadjuvantes. No romance da autora carioca, a narradora é uma menina rica, curadora que não poupa sarcasmo e ironia direcionados à cena das artes plásticas nacionais. Rodeada de amigos artistas, conhecidos ricos, familiares, pais com fortuna e guiada por um senso autodestrutivo que a faz fuzilar o meio da arte com todo tipo de desconstrução, a personagem é também um reflexo de um ambiente que Clara conhece bem. "Nesses ambientes da esfera da cultura existe menos meritocracia porque você demora muito tempo para ganhar dinheiro, precisa passar um período muito longo recebendo salário simbólico e existe uma certa hipocrisia nesses ambientes em relação a isso", explica a autora.
A construção da narrativa partiu de uma constatação: "Percebi que tinha uma quantidade enorme de amigos talentosos e que não podiam continuar nesse meio porque precisavam pagar aluguel e, ao mesmo tempo, tinha muitos amigos sem talento que continuavam nesse meio porque podiam pagar aluguel. E eu queria explicitamente que a narradora fosse uma pessoa sem talento". Com declarações incisivas — "Não existe um desejo real de igualdade social na esfera da classe artística que estudou em escola construtivista" e "Não existe rico que seja realmente uma boa pessoa" —, a personagem faz uma radiografia de uma elite intelectual e econômica para a qual dinheiro e vida financeira são tabus mais temidos que o sexo.
Clara conta que ficou surpresa com as reações ao romance. Alguns dos seus amigos dizem terem sentido vergonha ao se verem retratados na narrativa, mas ela enxerga certa ingenuidade nesse espanto. "Acho engraçada essa surpresa. Os grandes patronos dos museus são pessoas que provavelmente votaram no Bolsonaro. As cifras do universo das artes plásticas são muito altas. Quem tem quantidade excessiva de dinheiro está necessariamente explorando alguém e só essa pessoa tem dinheiro para gastar 500 mil dólares num quadro. Fico surpresa com a surpresa das pessoas. Quem as pessoas acham que tem 500 mil dólares para dar numa pintura?", explica.
Entrevista /Clara Drummond
"Não existe um desejo real de igualdade social na esfera da classe artística que estudou em escola construtivista": O que esse romance diz sobre a elite brasileira?
Em toda grande cidade existe essa classe de pessoas ricas que são mais conscientes e têm um discurso mais consciente. Acho que ninguém que trabalhe com esse meio quer pensar em si mesmo como alguém sem talento, e sim como alguém que merecia estar ali, que tem algo a dizer. E quanto mais altas as classes, mais acham que o que têm a dizer é interessante. Então há um vínculo entre uma pessoa de classe alta e ter certeza de que a visão de mundo dela é uma visão única. Vem do mesmo lugar de você estar acostumado a ser ouvido e poder falar as coisas: você não está numa posição de engolir sapo e fala as coisas que pensa como se fossem grandes iluminações. Existe um pacto silencioso no universo das classes altas, incluindo o da cultura. É um grupo de pessoas que vive uma vida inteira numa auto ilusão de que seria muito caridosa. Essas peruas que fazem caridade acham que estão fazendo uma coisa muito boa, não têm noção de que está dando migalhas
"Não existe rico que seja realmente uma boa pessoa", diz a narradora do romance. Não seria uma generalização?
Acho que existe, de fato, uma correlação entre riqueza e maldade e é uma correlação relativamente proporcional. Essa maldade pode vir tanto em termos de diferença de fazer as coisas sem perceber que está tornando a vida de muitas pessoas pior e uma autoenganação de pensar que não está fazendo nada de mal. Herdeiro de banco não vai pensar na quantidade de famílias destruídas por dívida. Existe uma escolha, que é inconsciente, de ter o poder de melhorar as coisas e de escolher não melhorar. Uma omissão. A falha ética e moral que vem com a riqueza se dá em muitos aspectos, explícitos e subjetivos, que variam de pessoa para pessoa.
Em certo momento, a narradora constata que dinheiro atrai contatos, que atraem dinheiro que compra quadros que enfeitam a casa. Seria assim tão fútil e superficial o mercado da arte contemporânea?
Acho que depende. Sou 100% a favor dos artistas, eles são as vítimas desse sistema. Muitos artistas têm um reconhecimento amplo, institucional, mas penam para pagar o aluguel. Existe uma diferença entre o tipo de arte que dá para pendurar na parede e o que não dá. E tem pessoas talentosíssimas que fazem quadros de pendurar na parede. O que existe de cruel é o mercado da arte e como ele se infiltra nas instituições mais e vitimiza os artistas que têm um pensamento crítico. Porque a porcentagem de artista que fica rica é muito pequena. A maior parte pode até viver bem e, ainda assim, o mercado é o vilão.
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