Memórias da convivência com sensibilidades diferenciadas transbordam, numa conversa com a atriz, diretora e, agora, escritora Beth Goulart, que, pelo Brasil, lança Viver é uma arte, escrito depois de duas dolorosas perdas: o pai Paulo Goulart (em 2014) e a mãe Nicette Bruno, em 2020, em decorrência da covid-19. Da dura realidade do aprendizado de "se" ninar nas noites sem sono, ela avançou para uma rede nada virtual de diálogo. "As redes sociais me auxiliaram muito, na medida em que estava dividindo, com outras pessoas, as dores do meu luto e, também, podia ajudar aqueles que, simultaneamente, passavam por isso", conta ao Correio, Beth, que viu como efetiva a corrente de solidariedade e compaixão.
Na arte da escrita, em que a atriz admira de Guimarães Rosa a Hilda Hilst, passando por Fernando Pessoa e Eugene O'Neal, Beth contou com a "bênção" de estar escoltada por Nélida Piñon, no prefácio, e Fernanda Montenegro, no posfácio. Desprendida do controle, Beth celebra um processo de escrita em que "a cabeça organiza o que o coração diz". Refletir nesse estado, nutrida pela temperança ("que é a esperança do tempo", como ela reforça), encaminha a dramaturga à confiança no fluxo dos sentidos, num adestramento à la Clarice Lispector (de quem ela cita: "eu vou me seguindo, depois é que vou descobrindo o que eu queria"). Na compreensão da vida, intensificada pela escrita, Beth, aos 61 anos, tropeça na beleza de envelhecer — "conseguimos aceitar melhor cada fase como uma construção de nosso arcabouço interno, uma catedral de nosso aprendizado".
Num "bom exercício" de arqueologia, na compreensão das civilizações, Beth Goulart embarcou em obras como a novela Jesus; enquanto, da literatura, reforçou conceitos de fé e arte. Da leitura consciente da Bíblia extraiu ensinamentos que transcendem o tempo. "Sempre tive uma conexão muito forte com Deus, penso que somos seu templo mais precioso, ele está em nós e a fé é nosso instrumento mais afiado para acessar este poder: o poder do amor — um sentimento-mãe que te abraça e te aceita do jeito que você é. O amor é nossa fonte de existência, dele nascemos e para ele retornaremos na hora devida. Para mim, o amor é Deus!", diz.
Aceitação, generosidade e excelência transbordam quando Beth dá crédito aos que agregaram qualidades na sua vida, entre colegas falecidos, numa lista que inclui Lauro Corona, Tereza Rachel, Françoise Forton e Marília Pêra. "Me ajudaram a ser quem sou", sintetiza. Aprendizados, no livro, que festeja feminismo, se misturam a enunciadas conquistas, algumas evolutivas, como crava a citação a Ofertas de Aninha (no qual Cora Coralina atenta para os "milagres da ciência"). "É preciso mudar, desde cedo, os pensamentos limitantes, introjetados pela educação machista e retrógrada. Criar um novo padrão de comportamento, criar meninas e meninos mais conscientes, mais amorosos e menos violentos, para um futuro de paz", avalia.
Entrevista - Beth Goulart
Há muita harmonia no que você escreve e na figura que você projeta, mas assume medos? Por que evita críticas severas a pessoas ou situações, nos relatos? As asas adquiridas na peça infantil O boi e o burro (dos anos 1960) parecem te perseguir, não?
Quando estamos em estado de puro amor tudo é serenidade. Nem sempre conseguimos manter esse estado de consciência por todo o tempo, somos tocados pelas vicissitudes da vida, os problemas, as dúvidas, os medos, as inseguranças, o sofrimento. Durante toda a minha vida busquei este lugar de paz dentro de mim, através de meditação, exercícios físicos, respiração, mas nada disso adianta se você não consegue realmente sentir essa paz. Só consegui isso quando me desliguei das demandas de fora de mim e encontrei um espaço interior, cheio de paz. Tenho fragilidades tais quais as de quem passa por uma perda profunda. Dor, solidão, abandono, saudade, angústia, medo, sentimentos humanos naturais que nos fazem ser humanos. Percebo esses sentimentos em mim, mas não há identificação com eles. Passam por mim, vejo, aceito, acolho, e deixo ir. Não nego os sentimentos ruins, apenas não me identifico com eles. Aprendi como I Ching que jamais devemos aprisionar as pessoas com o termo de "incorrigíveis", porque não daremos para elas a chance de se corrigir, de se tornar diferente, melhorar. Com isso aprendi a não julgar, entrego o julgamento final para Deus, ele sabe muito mais do que eu, o porquê de cada coisa, ele criou a lei da causa e efeito. O julgamento dos homens pode falhar, mas a justiça divina não falha. Entrego, confio, aceito e agradeço!
Há sensibilidade aflorada ou as pessoas seguem ásperas, no dinâmico pós-covid?
A pandemia nos mostrou o melhor e o pior das pessoas. Algumas máscaras caíram, pessoas se revelaram como realmente são e nem sempre o bem venceu, mas a vida é uma transformação constante. Temos em nós dois caminhos para escolher, a diferença é que o mal se propaga como a escuridão, sem precisar fazer nada. O bem, ao contrário, precisa ser acionado pela vontade: você precisa afirmar o bem em suas atitudes, palavras e ações. Precisamos acender a luz do bem todos os dias para iluminar o que precisa ser mudado. Assim caminha a humanidade.
Num retrospecto de carreira, o que vivenciou, no processo de Doroteia minha, ao tratar de Nelson Rodrigues? Qual a estatura dele?
Nelson Rodrigues é nosso maior dramaturgo, ele é um gênio. E como todo gênio, foi incompreendido em seu próprio tempo. As pessoas podem discordar dele como homem, mas como artista ele ultrapassa qualquer entendimento. Conseguiu retratar como poucos a linguagem do cotidiano: exaltando traços dramáticos e trágicos de relações familiares em Álbum de família, Vestido de noiva, Os sete gatinhos; profissionais e midiáticos como O beijo no asfalto e Toda a nudez será castigada; o ridículo trágico visto em Dorotéia, A serpente. Enfim, um gênio indomável, um anjo pornográfico. Fazer Dorotéia minha foi um resgate pessoal da história de minha avó com ele, e uma ode a sua linguagem lírica e apaixonada. Foi um privilégio herdar este segredo familiar e transformá-lo em teatro.
Para você, o que simboliza e que memórias chegam, numa alusão a Brasília?
Brasília tem sempre um mistério no ar, este azul único que encanta os sentidos, este clima que envolve os bastidores do poder dão a esta cidade uma importância única no cenário nacional. Tenho por Brasília uma admiração especial, uma cidade construída sobre um veio de cristal, sob às bênçãos de Dom Bosco e seus sonhos proféticos. É uma cidade do futuro, com a arte inserida na arquitetura de Niemeyer e Lucio Costa, com a beleza barroca das estátuas de Cheschiatti na entrada da Catedral de vidro. Um museu a céu aberto com o Teatro Nacional, Museu Niemeyer, Câmara, Senado, ruas largas em formato de avião, para ser o centro político do País. Tudo em Brasília é arte. Além disso, estreei o espetáculo Simplesmente eu, Clarice Lispector, em Brasília, além de muitos outros espetáculos, como Quartett, Os sete afluentes do Rio Ota, Decadência, Dorotéia minha, Perdas e ganhos, lugar onde vivi momentos únicos de minha carreira, que me deram muito contentamento.
Você, que já se destacou num papel oprimido pelo traçado patriarcal (Lucrécia Borja), percebe com que impacto o feminismo?
A mulher está confiando mais em sua própria voz e falando mais alto. Isso é muito bom. Temos que ser protagonistas de nossas vidas, com independência, autonomia e autoestima, só assim podemos reparar distorções históricas do lugar da mulher na sociedade. Precisamos de mais mulheres nos postos de comando das empresas, no Executivo, no Judiciário. A política, por exemplo, ainda é um terreno muito masculino que precisa ser transformado, somos a maioria do eleitorado, quando 52% dos votos no Brasil são de mulheres, mas que precisam de representantes na Câmara, no Senado, no Judiciário e na Presidência. Quanto mais representatividade, mais avanços, mais conquistas, mais direitos, mais proteção e menos abusos. Precisamos corrigir o atraso urgentemente, com leis que garantam nossos direitos e avanços. Tudo começa na educação.
Lya Luft parece ter marcante presença no seu cotidiano. Quais artistas que revolucionaram linguagens você admira?
Nélida Piñon e Fernanda Montenegro (ligadas ao livro Viver é uma arte) são duas damas da cultura brasileira. Elas são referências para todos nós. Da obra de Lya Luft adoro, além do próprio Perdas e ganhos, o livro O silêncio dos amantes, que é uma ode aos amores que perpassam nossa vida em todas as fases, da infância até a maturidade, me marcou. Não posso deixar de citar Clarice Lispector como uma criadora referência para mim, além de Lygia Fagundes Telles, Manoel de Barros, Caio Fernando Abreu, Virginia Woolf, Samuel Beckett e Shakespeare, entre outros.
O que pode ressaltar nas artes do entendimento, neste horizonte das definições eleitorais? Como analisa o papel da cultura?
Vivemos tempos de intolerância e saber ouvir é fundamental para saber falar; mas se tivéssemos mais diálogos estaríamos num lugar muito melhor. A cultura é a identidade de um povo, negar a cultura é tirar um direito inalienável do cidadão, é tirar dele o direito de escolher o que gosta de ver, ouvir, ler, sentir, ser. A arte existe porque a vida não basta, já dizia Nietzsche — e é uma verdade —, sem arte a sociedade se torna doente, sem elaborar seus sentimentos, as pessoas voltam-se umas contra as outras para despejar seus sentimentos represados. Da mesma maneira negar a ciência é negar o conhecimento. Como é possível jogar fora todo um trabalho de pesquisa porque alguém resolve desacreditar do resultado? Ciência é estudo, elaboração, conclusão e divulgação de conceitos descobertos depois de muito trabalho e dedicação. A ciência merece nosso respeito. Fé — cada um tem a sua — e todas merecem respeito.
Com que tom de vibração releu tua escrita? Ainda acredita que haja formadores de opinião?
O livro foi um desabafo sincero do meu coração, não tenho a pretensão de conduzir a opinião de ninguém. Quando uso esse termo, quero dizer que nós artistas somos vistos e ouvidos, nossas opiniões podem ter eco em alguém que se identifica conosco, mas em nenhum momento me coloco como dona da razão, mesmo porque não acredito nisso. Valorizo muito a liberdade e o pensamento crítico de cada um. Não quero que as pessoas vejam o que pensar, mas que pensem no que estão vendo. Essa é uma das funções da arte.
Quais as alegrias possíveis e os projetos impossíveis embutidos no seu dia a dia?
As alegrias possíveis são aquelas que estão ao nosso alcance, aquelas que só dependem de nós para se realizarem, às vezes, só ver um belo por do sol numa caminhada ou brincar com minhas cachorras, também as alegrias ligadas a realização artística, de ter saúde para concretizar as ideias, meus projetos, minhas aspirações. Os projetos impossíveis são mais complicados, dependem de outros fatores, como criar um centro cultural, por exemplo, uma escola de artes, um lugar para criação artística e formação profissional. Alguma coisa para deixar às novas gerações, esses dependem de outros recursos além da minha vontade, mas nada é impossível para Deus, se for de meu destino ele chegará até mim, e eu receberei essa tarefa com todo o meu amor.
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Viver é uma arte: transformando a dor em palavras
De Beth Goulart. Memórias, 138 páginas. Preço: R$ 59,90 (impresso) e R$ 34,90 (e-book). Editado pela Letramento.
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