Cena Contemporânea

Denise Fraga abre Cena Contemporânea com monólogo para todas as vozes

Peça "Eu de você", de Denise Fraga, abre o Cena Contemporânea, que tem início hoje e segue até 10 de julho

Foi no fim de 2018 que Denise Fraga publicou, nas redes sociais, uma mensagem na qual pedia às pessoas para enviarem cartas com histórias pessoais. Recebeu quase 300 relatos nos quais os autores a nomeavam como porta voz. "As pessoas falavam coisas do tipo ‘Denise, você vai falar por mim, vai me dar voz’. Me senti muito responsabilizada pela confiança que as pessoas estavam depositando na gente com histórias, às vezes, avassaladoras. Isso foi no fim de 2018, estávamos vivendo um momento complicado, estávamos tristes e chegou uma mostra de um país melancólico”, conta a atriz, que abre nesta terça-feira o 23º Cena Contemporânea com o espetáculo Eu de você.

Fotos:Thiago Beck/Divulgacao - 2022. Cultura. Espetáculo Eu de você, de Denise Fraga, no 23º Cena Contemporânea
Thiago Beck/Divulgacao - 2022. Cultura. Espetáculo Eu de você, de Denise Fraga, no 23º Cena Contemporânea
Thiago Beck/Divulgacao - Espetáculo Eu de você, de Denise Fraga, atração do 23º Cena Contemporânea
Thiago Beck/Divulgacao - Espetáculo Eu de você, de Denise Fraga, no 23º Cena Contemporânea

Montado com os relatos das cartas mesclados a trechos de literatura e embalado por um repertório musical refinado, o monólogo é uma colcha de retalhos de experiências muito pessoais que, no palco, se tornam universais. É, também, o primeiro monólogo de Denise.

A atriz conta que, no início, tinha um pouco de resistência em subir sozinha ao palco para dar voz às histórias coletadas nas cartas e misturadas a trechos de músicas e livros nacionais. “Gosto muito do jogo do perigo que é o jogo cênico, o que você recebe do outro, como manda de volta. Ficava com muito medo de estar sozinha em cena, achava pouco divertido, porque gosto muito de gente, elenco grande, mesa cheia”, garante. Com direção de Luiz Vilaça, marido de Denise, participação de uma banda formada apenas por mulheres e uma dramaturgia construída no próprio palco, Eu de você traz 25 histórias pelas quais desfilam dramas que vão do amor à morte.

Para Denise, a beleza do espetáculo está em evidenciar sentimentos universais. “O que é humano, o que pertence a todos nós, o que nos une, o que existe independentemente de opinião, crença, fé, essa polarização louca que estamos vivendo”, explica. “Recebemos as histórias do público, embalamos no papel de presente da arte, e devolvemos com essa nova embalagem que faz as pessoas verem beleza nas suas histórias tristes.” Segundo a atriz, Eu de você coloca um holofote na beleza da existência humana e o espetáculo acaba, de forma nada explícita, por ter uma conotação bastante política. “A peça traz questões que independem, que pertencem a todos”, diz Denise.

Com esses pedaços de história entrelaçadas com trechos de livros de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Paulo Leminski e músicas de Chico Buarque e outros compositores, Eu de você tece uma colcha de links que se transformam em uma história única e universal. "Não tem quem não se identifique", avisa Denise, que conversou com o Correio Braziliense sobre a peça.

Eu de você Com Denise Fraga. Direção: Luiz Vilaça. Nesta terça-feira, às 20h, no Conjunto Cultural da AdunB. Ingressos: R$ 80 e R$ 40 (meia)

 
Entrevista Denise Fraga

Pode contar como começou a idealizar esse espetáculo e de onde vieram todas essas histórias? Fazer Retrato falado, de alguma forma, ajudou na construção desse espetáculo?

Eu de você é diferente, as histórias não têm começo, meio e fim. A ideia veio de contar histórias reais, mas fazer essa trança com literatura e música, e com o que aquelas histórias fossem suscitando. Foi a primeira vez que entramos na sala de ensaios sem um texto, não tinha uma dramaturgia escrita. Foi sendo construída durante o ensaio. Também tem pedaços de histórias minhas com histórias que conto e tem horas que não se sabe se é história minha ou de quem estou contando. São pedaços misturados com trechos de literatura, música. Desde o início tem essa premissa de o jogo passar pela vivência do outro e não só fazer um personagem contando uma história. Me chegaram histórias muito comoventes, que acho que as pessoas não postam. Foi quase um desafio contar a histórias, que não são exatamente felizes, mas de um jeito leve sem ser leviano. A gente correu nesse terreno muito lusco fusco, esse lugar fino entre a emoção e o humor.

Esse espetáculo é uma maneira de ver o outro? Isso se tornou mais urgente com a pandemia?
A pandemia nos deu uma chamada para parar e olhar, como se tocasse uma sirene. 'Onde vocês estão indo?' E a gente não obedeceu essa ordem de parar, tivemos muitas possibilidades de aprendizado desperdiçadas. No início da pandemia, eu fazia coro com as pessoas que falavam “vamos sair melhor disso”. A pandemia jogou na nossa cara o absurdo da diferença social que vivemos. Quem não se preocupava com isso e não se preocupa agora é por leviandade, porque ela escancarou a vergonha que é a diferença social do nosso país. As filas dos R$ 600, os invisíveis que viraram visíveis, toda essa questão de quem poderia se expor ou não ao vírus, os morríveis e os não morríveis, ficou muito claro que existe um descaso no país como se existissem pessoas mais morríveis do que outras. Isso ficou muito escancarado.

Não houve transformação?
Eu fiquei realmente decepcionada como a gente se transformou pouco a partir dessa experiência. Como estamos mesmo numa sociedade doente. Abriu uma porteira e a gente saiu para nosso campeonato egoísta do dia após dia de uma forma completamente leviana. Não entendo direito esse posicionamento de para de falar de pandemia, de dizer “já foi, não vamos falar de coisa triste”. Isso nos rende o que nos rendeu sermos um país que anistiou todos os crimes cometidos na ditadura. Pagamos o preço disso hoje com pessoas falando levianamente da ditadura sem conhecimento histórico. Foi uma história que nos foi negada. Assim como a história da pandemia, a gente não pode esquecer. A gente não viveu só a pandemia, a gente viveu a pandemia brasileira, com esse governo irresponsável.

Qual o papel da arte e da cultura nesse cenário?
A peça, de certa maneira, diz que pessoas acompanhadas da arte vivem melhor. Uma coisa que sempre falei, mas essa peça diz isso em si. Você ouvir uma música do Chico e sofrer, saber que o Chico teve o mesmo sofrimento que você te faz saber que você faz parte de uma mesma humanidade. Quem leu Dostoiévski pelo menos vai sofrer mais bonito. A arte ajuda a gente. Se você pegar uma pessoa que tem a mesma escolaridade que outra, uma delas vai ao teatro, ao cinema, lê, escuta boa música, e a outra não, essa pessoa que consome arte tem muito mais condição de compreender a imperfeição humana e portanto viver melhor. A arte aduba a terra humana para a gente entender do que faz parte e o que está fazendo aqui. A arte livra a gente da mediocridade cotidiana, de achar que a vida é isso aqui. A vida é muito mais do que esse probleminha que tenho hoje.

 

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