Um desencontro de gerações embala a trama do longa Dissonantes, a partir de amanhã nas salas de cinema e que engrossa ainda mais uma corrente de filmes em alta, no momento: o das tramas movidas a músicas. Dissonantes tem direção de Pedro Amorim e parte do destino incerto de um cinquentão (vivido por Marcelo Serrado), que se vê sozinho e falido, depois de deixado pela parceira Clara. Em meio aos bastidores de um reality musical batizado de A próxima canção, o longa vem na tonalidade cômica.
Dissonantes acrescenta música a uma safra que expande dramas e conquistas de cantores como Céline Dion e George Michael, atualmente, com tributos nos cinemas, em Aline — A voz do amor e Freedom uncut (confira entrevista e crítica). Além de Emanuelle Araujo, Luis Miranda e Paulinho Serra, o longa nacional traz no elenco Thati Lopes, uma aspirante à carreira pop, e que perturba o dia a dia do guitarrista Paulo (Serrado), o decadente tiozão grunge, de quem aluga uma estrutura de estúdio.
Trajetória objetiva
Com valorização de música brasileira e da ambiência dos anos 1950 e 1960, Um broto legal, atualmente em cartaz, se valeu de dicas do músico Tony Campello na elaboração do roteiro concentrado na vida da cantora de Banho de lua entre outros grandes sucessos. "Sei o quanto é importante se ater aos cuidados com pesquisa", comenta o diretor do filme, Luiz Alberto Pereira. "Investimentos em jornais da época, em publicações como Manchete e O Cruzeiro, além de revistas de rock e numa pesquisa no Museu da Imagem e do Som paulistano. Tony Campello foi uma âncora de pesquisa para a gente. Participou, dizendo de comportamentos, expressões e das palavras usadas", diz.
Quando idealizou levar para as telas a trama de parte da vida de Celly Campello, o cineasta desconhecia o futuro que traria panorama de filmes como Elvis e Peggy Lee. "Há sempre coincidências. A música é algo que atrai, que une as pessoas, ainda mais no momento delicado em que nosso país está. Música você gosta, se envolve, canta e a emoção te leva a muitos lugares", reflete Luiz Alberto.
Ele conta que a inocência está bem presente no filme. Existiam outros valores, como ressalta. "As coisas têm mudado muito aceleradamente. É incrível comparar tudo com os momentos de hoje em que as meninas querem, de todo jeito, ter os 15 minutos de fama", observa. Mesmo objetivando fidedignidade, com cuidados estendidos à maquiagem e clima da época, tudo foi filmado em São Paulo. "Aqui em São Paulo se tem Taubaté, Rússia e China. É uma cidade muito louca", diverte-se.
Um pessoal mais novo, "ainda que com experiência", lidera o elenco. Como é o caso de Marianna Alexandre, presente em vários musicais. "Ela canta desde os seis anos! Optei ainda por caras novas, com testes que trouxeram revelações", diz. Murilo Armacollo, na pele de Tony, surpreendeu na trajetória da cantora (e irmã), consagrada por sucessos como Estúpido cupido. "Celly se diz cansada de tudo, a certo momento, querendo viver a vida normal", observa Luiz Alberto.
Ele buscou simplicidade e verossimilhança, no enredo. "O filme tem família, envolvimento da família dela e há um jogo de se conseguir vencer na vida", comenta Luiz Alberto, que completa: "Quis fazer um recorte historiográfico, com começo, meio e fim. Era importante ter algo assim elaborado desta forma. Ter personagens sem pé nem cabeça, e que veem e somem na trama, é coisa boa para série da Netflix. Há uma infantilidade na cultura do mundo, atualmente: o excesso de super-heróis. Isso, aliás, é um péssimo sinal. É algo do tipo 'a humanidade está precisando de super-heróis´".
Crítica // Freedom uncut
Real devoção à música
Encerrado com uma versão especial de A different corner (que, na letra, revela um caminho autêntico, mas de vulnerabilidade de um ícone), o filme Freedom uncut, dirigido por George Michael e David Austin, revela a trajetória ímpar de um astro da música capaz de peitar a indústria, e tomar medidas como dispensar lenga-lenga na promoção de discos e de desafiar os ouvintes com exposição de fortes posturas na vida pessoal. Investindo no percurso desde a dissolução da dupla formada com Andrew Ridgeley, há 40 anos, o filme examina a fundo a instabilidade advinda com o reconhecimento geral que contrastava com a infelicidade de um cantor, por uma fase, incapaz de manter contato visual com as pessoas (protegido por onipresentes óculos escuros).
Superada a ambição pelo reconhecimento, como indica o último trabalho do artista (morto em 2016, diante de causas naturais, com conjunção de problemas cardíacos e hepáticos), a fita investe no depoimento de fãs ilustres como Jean Paul Gaultier e Ricky Gervais, sem esquecer das fases de portas fechadas na América que, antes, acolheu com sede o fenômeno que impulsionou as maiores vendas de álbuns em 1988. O intuito de se descolar de ser sugado pela indústria dos discos, e se apegar à "vida real", numa tentativa de "saltar do carrossel" e acatar "o coração", no lugar da racionalidade de capitalizar o sucesso, marca muito a narrativa do documentário.
Tanto a base profissional, que acomodou uma exemplar (e dolorosa) performance em tributo a Freddie Mercury quanto as vitoriosas parcerias com talentos como Tony Bennett, Whitney Houston, Aretha Franklin e Elton John vêm bem destrinchadas no longa-metragem. Mas é o poder da libertação — fosse a sexual, junto à família religiosa, ou a das expectativas no embate contra a "escravidão profissional" determinada pela indústria, que tornam o filme mais interessante.
Dissolver correntes de atos tidos como "pecados" trouxe perseguições, algumas relacionadas às vitórias no The American Music Awards, em categorias como R&B (normalmente dominadas por artistas negros). Mesmo sem pretender se apropriar de "heranças negras", George pagou preços como um blackface (manipulado no computador) estampando a capa da Radio Guide. Eventualmente à frente de cantores como Michael Jackson e Terence Trent D´Arby, em listas da Billboard, George recebe, no filme, aval até de Stevie Wonder (de quem regravou They won´t go when I go), pela qualidade do "soul", independentemente de rótulos. Até menção a Frank Sinatra, e a tentativa de aconselhamentos dele para a carreira de George, estão impressos no filme.
Bastidores da feitura do clipe Freedom!90 (conduzido pelo renomado David Fincher) estão entre os pontos altos do novo longa. Também é bacana ver a capacidade de George rir de si mesmo (quando detido, em 1998, por atos libidinosos em banheiros públicos). Realçando o fator Brasil, onde descobriu o maior amor da vida: Anselmo Feleppa (falecido prematuramente), o filme investe na sensualidade e nas tristezas sobrepostas ao homem morto aos 53 anos. É assustador um dado: antes da morte, o artista ressalta a vontade de ser lembrado, ao lado de pares como Prince e Madonna, pela integridade pessoal e pela longevidade das letras. Em tempos de pandemia, é escandalosa a precisão de Praying for time. (RD)
Entrevista // Valérie Lemercier, atriz
Céline Dion assistiu ao teu filme Aline — A voz do amor?
O filme é inspirado na história dela. Não é a história dela. Céline não assistiu ao filme. Ela nem leu sobre, suponho. Seria como ler qualquer artigo no jornal sobre ela. Céline, para sobreviver, se mantém afastada de qualquer coisa que trate dela. Entendo muito essa escolha. Fiz o filme para ela e ansiava pela reação. Três anos depois do processo do filme, entendo que não se trate de uma prioridade de Céline assistir ao filme. Ela precisa sair da bolha do que é dito sobre ela, e viver de verdade. O filme é um tributo a ela, como uma carta de amor.
Você sempre é lembrada pelo humor em filmes como 50 são os novos 30 e O pequeno Nicolau. Como foi a vitória no importante prêmio César?
Conquistei, anteriormente, dois prêmios como coadjuvante. Pela primeira vez, estou orgulhosa de um papel protagonista, no filme em que obtivemos 10 indicações ao César. Com este filme, fiz mais do que interpretar: tive também que brincar com o meu corpo. Foi desafiador, pelas exigências de Aline no palco. Foi a primeira vez que a minha mãe, como espectadora, amou um filme comigo. Talvez isso tenha estendido o valor do filme para mim: ela ama me ver no palco, mas, no cinema, não (risos).
E o que diz de Danielle Fichaud, que interpreta Silvete, a mãe de Aline, com um talento à la Shelley Winters?
É um ser humano fabuloso e uma atriz da mesma medida. Ela não é famosa em Québec — é uma professora, e uma excelente profissional: passou 14 anos aprendendo artes cênicas. Pela primeira vez, foi valorizada num filme, e é tão bom. Foi ótimo conhecê-la, ainda somos amigas e falamos muito, hoje em dia. Danielle veio para minha agência. Em Paris, ela já está interpretando em outro filme: estou felicíssima — aos 65 anos, Danielle desponta em nova carreira. Isso é excepcional: ela é ótima e é muito engraçada.
O que chama tanto a atenção no uso da música no cinema?
Música é algo muito importante e não apenas as de Céline. Existem outras músicas no filme. Não saberia do fenômeno no Brasil, e não sabia da razão de ele existir. Aline, claro, é musical; mas lida com uma linda história de amor. Só existe uma música integralmente apresentada no filme, no encerramento, e fala da história de amor de Céline. Não é como Bohemian Rhapsody, com seus 20 minutos finais de música. Lá, é um concerto, ainda que eu goste daquele filme. Trazemos trechos de músicas.
Você canta em parte do filme?
Eu canto, sim, mas com uma pessoa normal. Não tenho muita voz e Céline está entre as cinco melhores vozes do mundo. Victoria Sio é fantástica, na voz de Aline. Não seria possível um filme ter alguém como eu, cantando (risos). Pesquisamos entre 50 cantoras, e escolhemos a que era a melhor. Isso veio com o trabalho paralelo de atriz dela. Há breves partes de minha voz, a título de respiração. Gastamos muito muito tempo para o convencimento da sequências. Victoria veio com uma grande voz e talento dramático. Antes da montagem do longa, ela e eu fizemos cenas tentando respirar parecido e introduzimos, nisso, breves partes da minha própria voz.
Como vê isso de homenagear alguém com uma energia viva, e que está entre todos?
Quis falar do amor. Na França e em Québec (Canadá), se ri do amor dela. Mas ele (René Angélil, marido, na vida real e empresário de Céline) foi muito verdadeiro. Quis abordar este gigante amor (com Sylvain Marcel fazendo o papel de Guy-Claude, um René transformado). Ele não está mais aqui (morreu em 2016), e é a maior história de Céline: ela não beijou outro homem. É um filme sobre Renê também e ele não está aqui. Mas a carreira dela está imbricada no trabalho dele.
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