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Cineasta Silvio Tendler defende o SUS no documentário 'Saúde tem cura'

Documentário de Silvio Tendler mostra a relevância do maior sistema de saúde pública do mundo e conclama para que seja realmente valorizado

Foi em 1985, na pele, que o cineasta Silvio Tendler precisou de uma tomografia, na Santa Casa da Misericórdia carioca, equipada com o único aparelho para os fins. O aparato foi doado pelo governo. Atendimento, hospitais e equipamentos de excelência estão na ponta da língua do diretor, ao tratar do mais recente filme: o documentário Saúde tem cura. "Minha mãe foi médica, e, pela aposentadoria, nunca chegou a ser do SUS. Ela morreu em 1995, e o SUS estava recém-criado. Ela foi médica no sistema público de saúde: sempre vi tratamentos exemplares", observa. Destacando tramas de carinho, competência e profissionalismo, Tendler também sabe do lado reverso da moeda: "Claro que o SUS tem muitos problemas, e não adianta tampar o sol com a peneira. Mas, ruim com ele, muito pior sem ele".

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O tópico saúde, há tempos, habita a filmografia do diretor, que já criou filmes como O veneno está na mesa (2011), sobre agrotóxicos, e Agricultura tamanho família: uma alternativa ao agronegócio (2014). Na trajetória de vida, quem foi vital para o tratamento de saúde de Tendler, à época dos anos 1980, foi o neurologista Paulo Niemeyer Soares, irmão do arquiteto Oscar. E bem antes de computar um dos mais ricos acervos particulares de imagens do país, com mais de 80 mil unidades, Tendler afunilou a relação com Brasília, antes de conquistar a medalha JK — Centenário JK (atribuída pelo MinC em 2003) ou mesmo dirigir a TV Brasília e ter sido secretário de Cultura e Esporte do DF.

Aos 72 anos, Tendler reitera o afinco de, depois de tratar de romantismo e de princípios abolicionistas em filmes, promover politizado painel de temas na obra que passa por privatizações, sistema financeiro, barreiras para a justiça social, cultura popular e saberes ancestrais. Isso, sem contar que o professor e historiador Tendler ainda abordou, nas telas, ícones como JK, Jango, Marighella, Ferreira Gullar e Carlos Zéfiro. 

Entrevista// Silvio Tendler

Qual o teor mais pernicioso, quando se fala em desmantelamento do Sistema Único de Saúde?

Perniciosa em relação à questão do SUS é a falta de financiamento crônico. O SUS é um dos projetos mais bonitos do mundo de saúde pública e, seguramente, o mais subfinanciado, mesmo atuando de uma forma linda, nunca recebeu os recursos adequados. É como se houvesse uma operação maliciosa de jogar a população contra a construção do SUS, como se tivessem um desejo de que ele não desse certo. E apresentam tudo como se a própria população se rebelasse contra ele, e exigisse a sua destruição. Dou um exemplo: a coisa que mais você encontra na mídia são pessoas reclamando da qualidade do atendimento, das horas que você passa na fila de um hospital para receber atendimento ou, mais ainda, dos meses e anos que você passa na fila para conseguir agendar um procedimento. Então, este é o fator mais pernicioso: a tentativa de evitar que o SUS vingue, que ele seja a realização concreta do sonho daquela geração que o criou, sobretudo dos usuários que querem ter uma saúde de qualidade — Saúde tem cura, o filme representa exatamente isso: o reconhecimento da importância do SUS e a necessidade de que ele seja respeitado. A pandemia mostrou a importância do SUS e agora precisamos partir para a segunda fase. Reorganizar o SUS, financiando as suas atividades, gerando recursos e também repensando a forma administrativa para que a população ame e o reconheça — como fez durante a pandemia.

Qual o fator decisivo no empenho dos funcionários do SUS?

o empenho dos funcionários do SUS e das estruturas sociais não é reconhecido apenas por mim — o é pelo conjunto da população brasileira. Todos vimos que, sem o SUS, a tragédia que levou quase 700 mil pessoas para morte teria sido muito mais grave não fosse o empenho desses funcionários. Então eu acho que o SUS provou a importância da sua existência. Os funcionários do SUS que são muito mais do que a gente imagina: há um complexo extremamente enorme. A gente reconhece muitas atividades de ponta, que é a UPA, o hospital, e o médico. A gente desconhece que o SUS forma pessoas: há escolas, centros de pesquisa e produção de vacinas. O SUS é extremamente complexo e amplo. Ele funcionou, recentemente, quase que como orquestra: todos foram ovacionados e reconhecidos. Você tem gente de todas as áreas vestindo o jaleco; isso é uma coisa extremamente importante. Acredito que o SUS terá o financiamento necessário porque, agora, a população está mais vigilante. Vai começar a cobrar, e o SUS vai sair das páginas das críticas, das lamúrias, para ficar nas páginas da reivindicação dos direitos. Vamos conseguir modificar um quadro de passado, que prevaleceu até hoje, e teremos o SUS que queremos.

Você tem uma carreira muito complexa — há como unificar interesses?

Acho que você pode esteticamente ter períodos, estilos e temáticas diferenciadas. Uma obra nunca é linear. Há quem abrigue, na memória, grupamento dos meus filmes, tematicamente, mas eu tenho muitas coisas que ultrapassam a biografia de três presidentes: o de JK, feito em 1980, o de Jango, que data de 1984, e ainda o do Tancredo Neves (2011). Nos anos 1980, fiz O mundo mágico dos Trapalhões (1981), que traz dados de um dos maiores grupos de comediantes brasileiros com da maiores bilheterias do cinema. Eu tenho Memória do aço que trata da história nacional da siderurgia nacional. Tenho filme sobre o poeta que é Castro Alves (1999), tem um filme de um revolucionário que é o Marighella. Há o do cientista Oswaldo Cruz, um sobre geógrafo Milton Santos (2016), em 1995, fiz o filme do José de Castro, um médico ecologista e um cara que lutou contra a fome. A minha obra é bem mais complexa do que as pessoas conhecem.

A política segue te interessando?

Atualmente, faço um filme sobre o Leonel Brizola, em torno de um político que sempre sonhou em ser presidente da República, não alcançou seu sonho, mas permeou muito dos painéis históricos que eu contei. É tudo mais complexo do que tentar me enquadrar como biógrafo dos presidentes da República. Eu recebi esta crítica de só falar do andar de cima, no passado, mas eu tenho muitos filmes com temáticas muito amplas e diferenciadas. Trato com o mesmo carinho dos que as biografias dos presidentes da República. Quanto ao futuro, eu acho que a gente realmente está precisando de uma renovação na política e na formação de novas gerações. Tenho muita saudades dos políticos com quais trabalhei. Acho que a formação de lideranças está ficando cada dia mais rarefeita. E eu tenho muito medo sobre a gestão e a governabilidade do Brasil, com este quadro pandemônio que estamos vivendo. Vamos em frente.

Houve espaço para aprender, no novo filme?

Quantas pessoas foram atendidas no Brasil inteiro nos cinco mil municípios do país que se trataram no auge da covid-19? Quantos foram recebidos nas UTIs? Quantas pessoas foram salvas pela luta dos funcionários do SUS, e que muitas muitas vezes trabalharam em condições subumanas? Este é o grande aprendizado: a batalha dos funcionários para salvar vidas, o número de pessoas vacinadas no Brasil, tudo pela estrutura do SUS. Hoje, 70% da população brasileira está vacinada até a segunda dose e, pouco menos, está na terceira: todos assistidos gratuitamente pelas estruturas — isso daí é uma prova concreta do funcionamento dos SUS. Houve pessoas deslocadas de avião, de helicóptero, para poder ser atendida. Concretamente, eu dou os números Manaus. Quando de uma ação homicida e irresponsável, que deixou faltar oxigênio em Manaus, a mobilização nacional, até mesmo não só do SUS, a mobilização funcionou muito para salvar vidas na Amazônia de ribeirinhos e de vidas no interior. Só posso te responder: Viva o SUS.

Tudo é só celebração?

Quando você se envolve num trabalho com a dimensão do que acabei de fazer, acho que o melhor — e isso trago desde o início da carreira — é não fazer um retrato chapa branca. Nunca se deve tentar ocultar o campo dos problemas — o negócio é expôr, revelar. Acho que a pior homenagem que você pode fazer uma personalidade, por exemplo, é acreditar que se trata de um santo, que a pessoa é isenta de qualquer tipo de crítica. No caso do novo filme, não foi diferente: entrevistei gente que fala bem e gente que fala mal. Acho importante o debate: levantar questões até para melhorar a qualidade e o rendimento do SUS. Tudo encerra meu método de trabalho, como documentarista. Eu não sou publicitário: não preciso ocultar realidade para promover um produto. Eu tenho que falar a verdade, tratar da realidade.

Que personagens te marcaram em Saúde tem cura?

Todo o personagem do filme é muito rico e sempre muito respeitado. Isso desde a paciente que se interna na emergência do hospital, à beira da morte, e dança um forró, na enfermaria, junto com o médico que a atendeu. Aquilo ali, para mim, é uma cena muito emocionante. Há a cena da doutora Jurema Werneck, uma médica negra, hoje, representante da anistia no Brasil. Ela conta a história da mãe dela — fala de o pai ter sido porteiro do hospital da Aeronáutica — e de como eles não tinham o direito de usar o hospital. A mãe dela teve AVC e foi tratada com aspirina, a título de favor, por um médico. A mãe morre, e Jurema vira médica e luta pela saúde pública no Brasil. O filme traz lutas contínuas: há o menino gaúcho que tem um problema de medula, e é tratado, de modo inteiramente gratuito — recebe inclusive os remédios e está vivo, graças a essa ação. Acho que o balanço é extremamente positivo.


Saúde tem cura

Documentário de Silvio Tendler sobre o Sistema Único de Saúde. Acesso livre em: https://youtu.be/b-kZMfwvKsM

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