Sempre criteriosa, Mônica Salmaso, uma das mais sofisticadas intérpretes da MPB contemporânea, ao gravar discos busca fazer a junção dos temas que escolhe para desenvolver com a obra de autores pelos quais tem apreço. Foi assim em Noites de gala, samba na rua, em que focalizou o universo de Chico Buarque de Holanda; Corpo de baile, no qual enfatizou a obra de Guinga; e Afro sambas, com a recriação de clássicos do legado de Baden Powell e Vinicius de Moraes.
Canto sedutor, novo álbum, que chegou recentemente às plataformas digitais, permitiu à cantora paulistana se debruçar sobre composições de Dori Caymmi e, por consequência, demonstrar a admiração que tem pelo patriarca de uma clã que muito tem feito para a cultura popular do país. Foi além: revisitou canções do filho de Dorival e o quis como partícipe do projeto.
Produzido durante a quarentena, determinada pela pandemia, Canto sedutor começou a ser idealizado quando Salmaso convidou Dori para participar. "Ver nossas vozes juntas é um sonho antigo. A música de Dori é referência para algumas gerações de músicos e cantores. Eu entre eles", destaca. O trabalho foi centrado na parceria do compositor com o poeta Paulo César Pinheiro, presença constante na discografia da cantora.
"Esse disco começou de uma ideia da Monica Salmaso, uma ideia a partir de umas lives que fizemos. Fiquei muito feliz que ela decidiu gravar um disco com músicas minhas e do Paulo César Pinheiro. E também porque o que vem me instigando ao longo desses anos é a beleza do canto da Monica Salmaso. Quero reafirmar que é um disco extremamente brasileiro", ressalta Dori. "É esse Brasil que eu sempre pensei, que vou morrer pensando nele, que vem da tradição da música brasileira. Que vem da geração de Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso e Dorival Caymmi, e que, com a gente, foi crescendo e amadurecendo no campo harmônico, graças a Tom Jobim e João Gilberto", complementa.
O repertório traz os clássicos Velho piano, Desenredo, Estrela da terra, Velho piano e História antiga, canção que deu origem ao projeto. A elas se juntam as inéditas Raça morena, Água do Rio Doce e Canto sedutor e composições da safra mais recente, À tôa, Delicadeza, Quebra-mar, Vereda e Voz de mágoa; e as que nasceram como temas instrumentais e foram posteriormente letradas, Flauta, sanfona e viola e O passo da dança.
Responsável pela produção do CD, o flautista Teco Cardoso foi quem arregimentou os músicos para as gravações. Ao lado de Dori, que toca violão estão: Tiago Costa (piano e teclado), Sidiel Vieira (contrabaixo acústico), Neymar Dias (viola caipira), Lulinha Alencar (acordeon), Bré Rosário (percussão) e o Duo Imaginário, formado por Adriana Holtz e Vana Bock (cellos). Há, ainda, a participação da St.Petersburgo Studio Orchestra.
Canto sedutor
Álbum de Mônica Salmaso e Dori Caymmi, com 14 faixas. Lançamento físico e nas plataformas digitais pela Biscoito Fino.
Entrevista// Mônica Salmaso
Em seus discos, você tem colocado em relevo a obra de mestres da música popular brasileira. Toma isso como uma missão?
Não como uma missão, mas como parte importante do meu ofício. Eu tenho a convicção de que a cultura brasileira é a prova da potência em que o Brasil tem, quase uma questão de responsabilidade. E, hoje, chamar a atenção para isto, nos identificar com isso é um remédio importante de força e de resistência.
Depois de Baden e Vinícius (Afro-sambas), Chico Buarque (Noites de gala, samba na rua), Guinga e Paulo César Pinheiro (Corpo de baile), agora destaca a parceria de de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, O que foi determinante para decidir homenageá-los com o Canto sedutor?
Para além da homenagem, mais do que merecida, esse trabalho é a celebração do encontro. Sou fã do Dori, todos os músicos que tocaram no disco são igualmente fãs dele. Estar com ele no estúdio, cantar junto, vê-lo trabalhando, ouvir suas histórias e, finalmente, realizar um trabalho com ele é um presente na minha vida.
Ter admiração pelo legado de Dorival Caymmi e ser amiga de Dori, já há algum tempo, foi decisivo para embarcar na criação deste disco?
Com toda certeza. Esse disco parte da nossa, (minha e do Teco Cardoso, que produziu o trabalho) admiração absoluta!
A longa quarentena, determinada pela pandemia, lhe favoreceu para idealizar e realizar o projeto?
A quarentena foi um momento de enorme avaliação para mim em muitos sentidos. Ser obrigada a parar, cancelar shows e gravações, olhar pra dentro e, ao mesmo tempo, ter realizado os vídeos do Ô de casas e visto o número grande e variado de pessoas com quem, de uma forma ou de outra, eu já tinha me relacionado na música me trouxe enormes reflexões. Ao mesmo tempo, essa paralisação criou uma vontade de produzir gigantesca e, dentro dela, a coragem de propor este disco ao Dori.
O disco traz canções mais conhecidas e outras menos conhecidas, além de inéditas. Qual foi o critério para a escolha?
O Dori me disse para eu escolher o que eu queria cantar. Eu fiz uma lista enorme e, a partir dela, comecei a pensar nas possibilidades. Era imperativo para mim ter o Dori cantando no disco. Precisava disso. Queria realizar o sonho de cantar com ele. Então, dentro das músicas escolhidas, separei aquelas em que nossos tons combinam e conseguiríamos cantar juntos. E depois chegaram novidades desta maravilhosa parceria entre o Dori e o Paulo César Pinheiro, que seguem produzindo belezas.
Flauta, sanfona e viola e O passo da dança, originalmente temas instrumentais, receberam letra a seu pedido?
Não, elas já tinham letra.Nasceram instrumentais, mas o Paulo César Pinheiro letrou e elas foram gravadas pelo Dori em discos mais recentes.
Por que condicionou a participação de Dori para gravar o álbum?
Porque a ideia de fazer o disco nasceu dos quatro vídeos que a gente fez juntos para o Ó de casas e eu fiquei muito emocionada em ver minha voz junto à dele. Não poderia de jeito nenhum deixar de ter isto no CD. O álbum é resultado do nosso encontro.
Pode ser considerado um luxo Dori ter, também, criado os arranjos, juntar a voz dele à sua em algumas faixas?
O CD é nosso, não é meu. É, com certeza um luxo pra mim!Gigante! Mas sendo um trabalho também dele, não haveria sentido em ele não tocar, cantar e escrever os arranjos.
Como avalia a presença frequente da poética de Paulo César Pinheiro em seu trabalho?
O Paulo César Pinheiro é um letrista genial e da maior importância para a música brasileira. Ele tem o domínio da língua e da cultura brasileiras; ele agrega compositores parceiros de várias gerações. É incrível como ele escreve com propriedade e os "casamentos" musicais que ele faz com seus parceiros.
Deixa sempre por conta de Teco Cardoso a arregimentação dos músicos que a acompanham em gravações?
O Teco vem produzindo meus trabalhos desde o Alma Lírica Brasileira. Ele é um produtor sábio, talentoso, paciente e que sabe fazer as coisas acontecerem. Ele escuta as ideias e demandas com cuidado, colocando as dele e sabe como realizar os projetos. A gente tem orçamentos apertados, a gente não tem folga. Então tudo é pre-produzido com cuidado pra que dê tempo e sempre dá. Além, obviamente, do fato de ele tocar como toca! No caso deste trabalho, especialmente, há ainda o fato de que o Teco tocou com o Dori nos anos em que ambos moraram em Los Angeles, inicio dos anos 90. Tem uma amizade, admiração e confiança longas.
Lançar Canto sedutor num momento em que a arte e a cultura brasileiras são tão depreciadas por quem comanda o país, deve ser visto como um ato de resistência?
Absoluta resistência em muitos sentidos. Um trabalho que fala do Brasil profundo, de questões ambientais, de amor pela nossa cultura, de beleza, com força e delicadeza, tudo o que este governo atual tanto teme quanto tenta destruir.