O julgamento por difamação nos Estados Unidos entre os atores Johnny Depp e Amber Heard, e a decisão de televisioná-lo, terá um impacto "potencialmente catastrófico" para as vítimas de abuso, afirmam diversas mulheres vinculadas aos temas da violência doméstica e das agressões sexuais.
Os membros do júri no julgamento que se estendeu por seis semanas, no qual os dois atores trocaram acusações de violência doméstica, se posicionaram ao lado de Depp.
Assim, decidiram que Heard deve pagar 10,35 milhões de dólares por difamá-lo em uma coluna publicada no Washington Post de 2018, na qual ela não mencionava o nome do ator, mas o descrevia indiretamente como um representante do "abuso doméstico".
Por outro lado, Depp terá que indenizar a atriz em 2 milhões de dólares por danos e prejuízos. A advogada de Heard, Elaine Bredehoft, disse na quinta-feira que sua cliente não tinha recursos para pagar a indenização estipulada.
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A juíza Penney Azcarate decidiu permitir, semanas antes do início do julgamento, a presença de câmeras no tribunal estadual, temendo que, se não o fizesse, muitos repórteres apareceriam para acompanhar o caso.
"Não vejo nenhuma boa razão para não permitir" as câmeras, disse Azcarate, segundo o meio Variety, uma decisão que os advogados do astro de "Piratas do Caribe" endossaram, mas que a defesa de Heard tentou impedir em vão.
Michele Dauber, professora de direito na Universidade de Stanford e ativista contra as agressões sexuais no ambiente universitário, considerou a decisão da juíza como "a pior" para as vítimas "em décadas", o que revela "uma profunda falta de compreensão por parte da juíza sobre a violência sexual".
Heard se viu obrigada a "descrever seu suposto estupro com detalhes gráficos na televisão. Isso comove a consciência e deveria ofender todas as mulheres e vítimas, independentemente de concordar com o veredicto ou não", ressaltou.
Dauber explicou que o último caso do qual ela se lembra que uma vítima de estupro foi obrigada a testemunhar publicamente ocorreu em 1983.
"Não há forma de justificar a decisão da juíza de permitir câmeras neste caso [...] Não existe interesse público neste caso que possa compensar o dano causado", opinou.
Por outro lado, argumentou que "todas as vítimas vão pensar duas vezes antes de se apresentar e buscar uma ordem de restrição ou contar a alguém sobre qualquer abuso que estejam experimentando depois disso".
"As mulheres podem acabar feridas e inclusive mortas ao não buscar ajuda. Este caso foi um completo desastre", frisou.
O julgamento cativou uma audiência mundial que não está acostumada a ver acusações de agressão sexual e as intimidades de um casal nos tribunais e isso, independentemente das opiniões sobre o veredicto, é um problema, advertiu Ruth Glenn, presidente da Coalizão Nacional contra a Violência Doméstica.
"Acredito que temos ainda uma sociedade que não compreende a dinâmica da violência doméstica", declarou Glenn à AFP em uma entrevista.
Esse contexto não foi discutido o suficiente durante o processo em Fairfax, argumentou, ao enfatizar que, para ela e seus colegas, "não havia dúvida" sobre os padrões de abuso que se apresentavam.
"É preciso garantir que há pessoas presentes que entendam isso. E, até que não haja, não podemos televisionar isso", disse.
'Misoginia pura'
Dauber, que foi alvo de abusos on-line por tuitar sobre o caso, disse também que isso revela a crescente reação contrária à defesa dos direitos das mulheres nos Estados Unidos.
A opinião pública se manteve forte ao lado de Depp, com Heard servindo de alvo de inúmeras postagens e memes nas redes, alguns dos quais Dauber descreveu como "misoginia pura".
O veredicto foi recebido com festa por muitos expoentes da direita política, afirmou Dauber, incluídas mensagens no Twitter de Donald Trump Jr., filho do ex-presidente republicano, e do poderoso Comitê Judicial Republicano da Câmara dos Representantes.
Heard foi "metaforicamente alcatroada e emplumada", e o veredicto "deixa claro que, por ora, a reação violenta contra os direitos das mulheres está tomando o controle", escreveu. Ademais, citou os temores em torno da possibilidade de a Suprema Corte dos Estados Unidos anular o direito ao aborto.
Para muitos, o caso Depp-Heard tamb
ém lança dúvidas sobre o futuro do "#MeToo", o movimento criado a partir da hashtag de 2017 que encorajava as mulheres a denunciar os homens que haviam abusado delas.
"É impossível não ver isso como uma reação violenta ao #MeToo, como se as mulheres tivessem ido longe demais. Está bem, senhoras, ouvimos vocês e prendemos alguns homens. Não sejam tão gananciosas agora", escreveu uma usuária da rede Reddit em uma publicação de blog para o guia de conteúdo na internet Embedded Substack.
Por sua vez, Tarana Burke, fundadora do movimento #MeToo, fez no Twitter uma publicação desafiadora que enumerava suas conquistas e pedia a seus seguidores que se concentrassem nos milhões de mulheres que agora falam sem sentir vergonha, ao invés de entrar no fogo cruzado de vitórias e derrotas judiciais. "Este movimento está muito VIVO!", exclamou.
Glenn, por outro lado, foi mais filosófica. "Eu diria que, de qualquer maneira, não sei quanta tração nós ganhamos. Assim que devemos usar isso como um lembrete do trabalho que ainda precisamos fazer", disse à AFP.