O Festival Mova recebe hoje o piano de Amaro Freitas, considerado um dos principais nomes da música instrumental brasileira. Enquanto fazia turnê pela Europa, falou com o Correio sobre o novo trabalho, Sankofa, a carreira e a parceria com Milton Nascimento e Criolo, além dos efeitos da pandemia. "Para mim e para o Criolo, gravar com Milton Nascimento teve um simbolismo muito importante, um encontro de três gerações de homens negros", destaca. Formado nas noites de Recife, Amaro carrega uma versatilidade sonora e virtuosidade singulares, que remetem o espectador a camadas musicais primitivas e emocionais únicas. "O grande momento do nosso trabalho é saber que a nossa música se conecta com as pessoas independentemente de serem brasileiras ou não. Há um diálogo ancestral, uma experiência mesmo", ressalta, diante do sucesso no exterior.
ENTREVISTA / AMARO FREITAS
Sankofa, disco lançado em meio à pandemia em 2021, recebeu elogios da mídia estrangeira pela versatilidade sonora e uma pegada bastante original. Você misturou sua ancestralidade africana com a pulsação nordestina. Como foi elaborar as músicas desse disco?
Sankofa foi um processo natural, em que foram chegando vários temas que falam de ancestralidade, que de uma certa forma nos foi negado na escola. Sankofa sugere uma outra visão sobre reis e rainhas africanas, provérbios e sabedorias, uma outra visão de mundo. O álbum me ajudou a atravessar esse lugar e, com o trio, trazer esse mundo para a música, num trabalho colaborativo, que também teve a participação de Laércio Costa, meu empresário. Todos esses pensamentos têm a ver com a construção artística do disco. Sankofa foi um trabalho em equipe, que durou três anos, e alcançou um campo filosófico, ancestral, musical e até ligado às artes plásticas.
A parceria com Milton Nascimento e Criolo ainda repercute. Fale um pouco desse encontro, que fez você buscar tonalidades no piano diferentes para a voz de cada um deles.
Considero essa parceria com Milton e Criolo como um presente que recebi da vida, são dois queridos. Acho que, para mim e para o Criolo, gravar com Milton Nascimento teve um simbolismo muito importante, um encontro de três gerações de homens negros, de lugares diferentes e que só foi possível por conta da arte. Milton tem uma representatividade negra de memória, de afeto, de auto-estima. Eu e Criolo crescemos ouvindo Milton. Na parceria, tentei entender quem era cada um e trouxe um piano muito mais minimalista para Milton e, para Criolo, trouxe mais a onda do jazz contemporâneo. Cada vez que ouço essa música (Não existe amor em SP), me emociono.
A pandemia pegou em cheio seus projetos e turnês, mas você deu a volta por cima. Que aprendizado ficou?
A pandemia destacou a importância da coletividade. Quando estamos juntos, e vêm surpresas que não imaginamos, somos mais fortes. Isso serve para a música, minha vida, como também no sentido social mesmo, na vida de uma comunidade. Pena que a desigualdade social fez com que as pessoas, inclusive músicos, entrassem em situações de calamidade e de desespero. Quando um grupo social oferece uma justiça maior, nós sofremos menos. Essa é lição.
No palco, você tem a companhia de dois gigantes: Hugo Medeiros (bateria) e Jean Elton (baixo). Como esse time se conheceu?
Tenho a sorte de tocar com dois grandes músicos. Nos conhecemos em Recife, eu tocava na noite com Jean e, logo depois, conheci Hugo, professor do conservatório pernambucano. Logo começamos a ensaiar para gravar o disco Sangre negro, o trabalho acabou dando certo. A partir do momento em que a música autoral e instrumental nos proporcionou viver dela, a gente teve mais tempo para se dedicar a novos trabalhos e trazer a nossa vida para a música. Esse trio funciona mais como um cardume que se movimenta junto, um organismo vivo. Criamos uma unidade sonora, é uma coisa muito bonita de se ouvir (risos). É a nossa pérola.
Esta entrevista foi feita enquanto você estava na Europa para uma turnê. Como os gringos definem sua música? Jazz? World music? Ou você não importa com essas prateleiras?
A maioria desses estrangeiros está no lugar de entender a música como uma experiência. A gente entra, sim, nesse universo jazzístico, principalmente pela possibilidade de experimentação com a música. Alguns vão chamar até de "piano amazônico", "a nova música brasileira" ou "o jazz renovado", mas na realidade é uma experiência de música que traz nossas tradições e que tem uma influência muito forte do jazz, porém com uma visão totalmente nova, que está conectada com a música do mundo. O grande momento do nosso trabalho é saber que a nossa música se conecta com as pessoas independentemente de serem brasileiras ou não. Há um diálogo ancestral, uma experiência mesmo.
A sua versatilidade e o improviso vistoso trazem um estilo próprio de tocar piano, às vezes como um batuque elegante. Como foi sua formação?
Não tenho uma formação erudita no piano, uma formação clássica, a minha vida foi sempre aprendendo com um, com outro. Não me considero um autodidata, porque muitas pessoas me orientaram na vida e foi um jeito diferente de aprender. Mas foi um jeito eficaz desde a igreja, quando entrei numa escola de música elementar, quando entrei na faculdade de produção fonográfica, quando comecei a tocar na noite nos restaurantes, a participar de alguns grupos experimentais de música contemporânea. Vários pianistas passaram em minha vida e trocaram experiências que me marcaram. Assim, o piano que tenho foi se formando.
Você se apresenta hoje em Brasília para um público jovem e variado, qual será seu repertório?
Feliz em poder me apresentar em Brasília, dentro do Festival Mova. O repertório reúne um pouco do disco Sangre negro e Sankofa. Vamos levar um show com muita energia, para cima. E tudo que a gente quer é se conectar com as pessoas, trazer um momento de celebração, que possa elevar nossa vida.
SERVIÇO
Neste sábado (5/6), a partir das 16h, no Bosque atrás da Arena BRB Nilson Nelson. Ingressos: 3º lote R$ 70 (meia-entrada). Vendas: https://www.sympla.com.br/evento/festival-mova-2022/1544134