Sebastião Salgado criou duas exposições com o material fotografado produzido na Amazônia nos últimos nove anos. Uma delas leva o título de Blessures (Feridas, em tradução do francês) e foi doada ao Instituto Krajcberg. São imagens da destruição que assola o maior bioma brasileiro e sua exibição, por enquanto, está restrita à Europa. A outra, Amazônia, desembarcou no Brasil em maio e foi montada no Sesc Pompeia. Em julho, chega ao Museu do Amanhã e, depois, vai para Belém antes de seguir para Los Angeles. Dessa vez, Salgado e a mulher, Lélia, optaram por mostrar o lado bonito e exuberante da mata. "Essa é uma opção que nós fizemos", explica Salgado, em entrevista ao Correio. "Claro que fotografei fogos na Amazônia, desmatamento. Mas resolvemos apresentar a Amazônia viva, que não foi destruída e precisa ser preservada."
A exposição tem um total de 194 imagens apresentadas em montagem com pouca luz e backlight, o que valoriza os contrastes e dá um ar sagrado à vegetação e aos indígenas retratados. É como se Lélia e Sebastião construíssem um ambiente de adoração e contemplação para o tema. Das quase 200 etnias remanescentes na região amazônica, Sebastião Salgado registrou 12. Durante esses anos percorrendo a região, viu de perto o impacto do desmatamento e da invasão de terras indígenas. Segundo estudos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a destruição das terras indígenas na região aumentou em 150% nos últimos anos.
Expor a ameaça que paira sobre povos e biomas do planeta é um compromisso antigo de Salgado. Começou com projetos como Trabalhadores e Êxodos e ficou claro em Gênesis, no qual o fotógrafo saiu em busca de regiões intocadas e povos tradicionais. "Tive oportunidade imensa, quando fui fazer Gênesis, de conhecer uma grande parte do lado prístino do nosso planeta e isso me levou à Amazônia", conta. "Trabalhei com várias tribos na Amazônia brasileira, mas vendo o que estava acontecendo percebi que havia um avanço imenso na destruição da floresta, principalmente vindo da periferia para o centro."
Em janeiro de 2013, quando apresentou pela primeira vez o resultado de Gênesis, Salgado já alimentava a semente de Amazônia. A intimidade com as questões relacionadas ao meio ambiente já havia rendido frutos como o Instituto Terra, criado em 1998 para preservar a mata atlântica, inicialmente na região da serra de Aimorés, onde o fotógrafo recuperou milhares de hectares na fazenda herdada dos pais. Hoje, as ações do instituto se espalham por todo o Vale do Rio Doce, atingindo municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo. Em conversa por vídeo, de Paris, onde mora há mais de quatro décadas, Salgado falou sobre Amazônia, sobre o futuro da mata e seus povos e sobre a política ambiental no Brasil.
Entrevista/Sebastião Salgado
Segundo o Ipam, o desmatamento na Amazônia cresceu quase 57% nos últimos anos. Você teme que a floresta que fotografou já não seja a mesma?
O bioma amazônico, principalmente no governo atual, sofre total ameaça. A primeira coisa que este governo fez foi tirar os filtros de proteção. O Ibama era um grande filtro de proteção, que verificava, dava multas. Foi eliminado para permitir a destruição. O segundo filtro foi a Funai, que sempre foi dirigida por cientistas, sempre foi organizada e funcionou na mão de sertanistas, de sociólogos, de antropólogos. A Funai hoje é dirigida por um delegado de polícia e serve ao agronegócio mais do que às comunidades. A Funai passou a ser o inimigo das comunidades. Isso permitiu a violação extrema do bioma e das comunidades indígenas. Minha grande esperança é que teremos eleição em quatro meses e que o próximo presidente não seja mais esse predador que está aí, seja alguém que respeite as grandes instituições brasileiras. A Funai é uma das maiores instituições de todas as Américas. Comunidades indígenas dos Estados Unidos e do Canadá foram inteiramente destruídas. O Brasil as mantém. E a Floresta Amazônica era altamente protegida pelo Ibama, pelo Instituto Chico Mendes.
Você chegou a acompanhar o impacto dessa destruição junto às populações indígenas?
São ameaças terríveis que estão acontecendo. O Brasil possui a maior concentração de índios isolados do mundo. Uma das maiores concentrações está no vale do Javari, e eles sofrem ameaças diretas dos garimpeiros, dos madeireiros e de pescadores, que facilitam enormemente a penetração dos territórios indígenas. O território yanomami está sendo violado por mais de 20 mil garimpeiros. Esses territórios são protegidos por lei, o governo brasileiro devia ser o primeiro agente da Constituição defendendo esse território. O governo é composto de três poderes: o Executivo, que é um predador, o Legislativo, que não toma posição, e o Judiciário, o único poder que mantém referência. É com o judiciário que estamos contando. As comunidades poderiam ter sido quase eliminadas agora com a covid-19. Graças ao judiciário, conseguimos que fossem as primeiras a serem vacinadas. A gente tem tendência a imaginar que o governo é só Executivo, mas temos três poderes e um deles atua, que é o judiciário.
Mostrar a beleza, e não a destruição da Amazônia, tem capacidade de mobilizar mais as pessoas?
São mais de 180 línguas diferentes, mais de 185 culturas diferentes, com origens diferentes. A opção que fizemos foi essa, de apresentar a Amazônia viva no sentido de que as pessoas compreendam o que é e que precisamos perseverar. É a maior concentração de riquezas do mundo. Eu sei porque o custo para recuperar um hectare é enorme. E quanto custa a destruição de um hectare da floresta amazônica? É o preço que vamos ter que colocar para refazer. Custa uma fortuna. Uma fazenda jamais vai gerar riqueza suficiente para pagar a destruição que fez. Se tivéssemos um projeto de desenvolvimento sustentável, para tirar um projeto turístico, com distribuição de cooperativas e comércio justo, íamos trazer um fluxo maior de dinheiro do que entra hoje. Com as plantas medicinais, poderíamos revolucionar a indústria farmacêutica. Mas isso é uma decisão de governo, uma decisão de levar a Amazônia para um projeto sustentável.
Alguns cientistas dizem que a próxima pandemia pode vir da Amazônia. O desmatamento aumenta a probabilidade de contato com novos microorganismos que causam doenças infectocontagiosas. Há uma relação entre a Amazônia e a pandemia que estamos vivendo?
Claro que sim. Quando você olha a covid-19, é causada por um vírus que saiu da natureza, assim como o ebola. Então, se você pensa em um espaço como a Amazônia, o que contém de vírus, o que contém de enfermidades estocadas que nem conhecemos e que vão proporcionar surpresas terríveis com a destruição... Se continuarmos a grande escalada de destruição, seguramente vamos ter surpresas terríveis com vírus saindo da Amazônia. Imagina se tivermos três ou quatro vírus como o que causa a covid-19?
Houve momentos de muita tristeza durante as expedições? Quais foram?
Os momentos de tristeza vieram toda vez que tive acesso aéreo e via a destruição da floresta, quando via milhares de toras de madeira descendo o rio, extraídas ilegalmente. Me dava uma tristeza imensa ver esse incentivo à destruição da maior riqueza brasileira. Esse governo atual tem que ser responsabilizado por esse crime ambiental que está cometendo.
Como foi a aproximação e a relação com os indígenas durante a execução do projeto?
Ir para comunidades indígenas precisa de muito tempo. Primeiro, o acesso é difícil, precisa obter autorização. Obtive autorização da Funai. Só pude ir depois da autorização e eles sabiam que eu ia, estavam me esperando. Para fazer um trabalho desses, precisa de muito tempo, precisa viver com as comunidades. Os indígenas são muito democratas. Para começar a trabalhar, tinha reunião com a comunidade inteira, durante dias, para me conhecerem. As comunidades indígenas jamais foram tão ameaçadas como agora. E nunca foram tão organizadas. Eles estão altamente organizados e sabiam quem era eu e que meu trabalho serviria no sentido de divulgar para proteger. Na exposição, eu faço sim apresentação estética através das fotos, Lélia traz uma quantidade de informação, mas quem traz o ponto político e social são as entrevistas de líderes indígenas que estão dentro da exposição fazendo discurso na língua deles .
Houve negociação entre o que você queria mostrar e o que eles queriam falar?
Todas as comunidades com as quais trabalhei, sem exceção, já tinham tido contato. Eles conheciam o mundo do qual eu vinha, por que eu vinha. Só me aceitaram porque o que eu ia fazer era coerente com o que eles queriam apresentar. Houve total amalgamento com o que estava esperando e o que eu poderia oferecer. Foi muito bom, interessante, sincero. Eles são profundamente sinceros e sabem que estão profundamente ameaçados, que se a gente não conseguir que o bioma seja protegido, eles não terão mais o meio ambiente garantido e eles precisam de todo o sistema amazônico para continuar a existir como comunidade. A gente, às vezes, tem uma ideia de que os indígenas são ingênuos, inocentes. Eles são iguaizinhos a você e a mim. Dentro da floresta, são o mesmo animal que eu, com a mesma acuidade e preocupação, existe uma verdadeira troca.
Você teve a oportunidade de conviver com populações que vivem em áreas isoladas, apesar do contato com o branco. O que acha do discurso da integração?
A opção tem que ser da comunidade indígena e não de uma proposta política interessada no espaço que o indígena ocupa hoje. As comunidades indígenas entraram na América há 20 mil anos, quando chegaram na Amazônia e tiveram que buscar seus territórios. Eles são agricultores e buscaram as terras mais aptas à agricultura. O que acontece no governo atual? Eles estão loucos atrás das terras indígenas porque são as melhores para a agricultura, mas elas são protegidas pela lei.